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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Pelas Calçadas...




       São muitas as coisas que encontramos pelas calçadas, e que podemos observar, principalmente quando fazemos percursos a pé. Algumas nos levam a sorrir, nostálgicos, como a marca do triângulo para as disputas de bola-de-gude, os quadrados que nos levam ao “Céu” e ao “Inferno”, dos jogos de amarelinha. Ah, o barbante do pião, rabiolas coloridas de pipas... Brincadeiras de crianças...

       Também encontramos canteiros, com pequenos jardins e árvores colorindo nosso caminho com folhas e flores de matizes diversas. E viajamos pela doce primavera; relembramos o calor mais intenso daquele verão; a brisa calma do outono, e as cinzentas nuvens do inverno. E tudo isso na calçada.

        Ah, mas não há somente poesia, não. Ainda encontramos papéis, chicletes, palitos de churrascos (de gato?), churrasqueiras, bancas de frutas, outras tantas de cacarecos dos mais diversos.
       A calçada, pavimento, passeio público, lugar de pedestre, mas que vem sendo invadida por carros que nela insistem estacionar, quebrando as pedras, o cimento, esbarrando nos canteiros, empurrando pessoas, carrinhos de bebês e idosos para a rua. E por causa dessa invasão, e inversão, assistimos à multiplicação de gelos baianos (não sei por que atribuíram a naturalidade baiana aos blocos de concretos. Poderiam ser cariocas, ou gaúchos, ou...).
       Mas de tudo o que já vi pela calçada, o que mais tem chamado a minha atenção são os corpos estirados sobre o cimento duro, cinza, sujo. Sim, corpos, corpos e mais corpos. Corpos de crianças de cerca de nove, onze anos, de adolescentes, de jovens homens e mulheres. Corpos largados, abandonados e atravessados na calçada. Parecendo anestesiados ao frio, ao sol.
         Vejo pessoas, que passam perto desses corpos, sem os notarem, como se fossem invisíveis, como já acontece com os corpos de etilistas, que desfalecem ao torpor do álcool; ou dos mendigos que, fatigados, lançam-se no chão para descansarem de uma noite de vigília.
       Parece, no entanto, haver alguma diferença entre os etilistas e mendigos e os corpos com que tenho me deparado nas calçadas. Os primeiros procuram um banco de praça, uma marquise, uma soleira para deitarem, para caírem. De certa forma, buscam alguma proteção, mesmo que ilusória.
     Os corpos que vejo pelo chão parece terem sido abandonados por seus proprietários, seus donos de fato e de direito: a própria pessoa. É como se a alma, ou o espírito tivesse abandonado o corpo à própria sorte, como um peso, largado no caminho.
           E assim, assistimos ao que pode ser o momento mais triste e degradante das nuvens do crack, dessa nova epidemia que atinge a população: pelas calçadas, há corpos estendidos no chão.

Luzia M. Cardoso


Crônica selecionada para publicação no CBJE, 2011.




terça-feira, 20 de setembro de 2011

UM RIO DE DESCASO




Manhã de terça-feira. Preciso ir ao Centro da minha Cidade Maravilhosa. Conheço o rush e opto por ir de ônibus pois sei que o fluxo será lento, além das dificuldades de estacionamento. Em todo caso, imagino que, num percurso em que faria entre 30 a 40 minutos, em outro horário, talvez, a essa hora, eu o faça em 60min.
Entro no ônibus e já na Avenida Brasil um engarrafamento injustificado. Não era o trânsito lento que previa, mas um trânsito parado. Fazer o quê?
Resolvo observar a paisagem. Gosto de olhar a arquitetura dos prédios, bem como os grafites que insistem em gritar nos muros da cidade. Mas se gosto de grafites, acho as pichações de extremo mau gosto e falta do que fazer.
E por falar em arquitetura, nunca é demais observar a beleza do Castelo Mourisco, na Fundação Oswaldo Cruz, em Manguinhos. 


No caminho, ouço o grito de muitos grafites interessantes. Alguns em linhas curvas, em preto e branco, com temas românticos e que, pelo traço, parecem ser de uma mesma pessoa. Outros, em cores mais fortes, mostram expressões de susto, de descontentamento, retratando crianças e adultos. O muro da Usina de Cidadania é outro momento bastante agradável, onde há grafites que denunciam a destruição do meio ambiente.
Como por ironia, entre o Castelo Mourisco e a Oficina de Cidadania, há um rio com águas turvas, pesadas, inertes. Lá, multiplicam-se as favelas em Manguinhos, às margens de um rio defunto.



Insisto em olhar a rota do rio, procurando o ponto de partida. Vejo a Serra da Tijuca, onde, quem sabe por algum milagre, ainda exista a sua nascente. Do outro lado, o rio segue o seu destino, desaguando na não menos poluída Baía de Guanabara. Fico desolada.
E o tempo passa... Eu ainda estou lá, andando como tartaruga, na Avenida Brasil.
A partir desse ponto, o que vemos é de chorar. Muitos prédios desativados, tanto de empresas privadas, como a antiga fábrica de sabão União Fabril Exportadora - UFE, quanto os prédios públicos. Até por uma igreja em péssimas condições nós passamos.
Uma cidade largada é o que vemos pela Avenida Brasil, de São Cristóvão ao Terminal Rodoviário Menezes Cortes, próximo ao Porto do Rio.


O que deveria ser uma das portas de entrada do Rio é algo simplesmente deplorável de feio, de décadas de desprezo, negligência e má administração. E olha que nessa região temos um mix de público e privado.


O que salva são os artistas anônimos que grafitam os muros. Já ao entramos na Avenida Francisco Bicalho, deparamo-nos com os pilares do Elevado Paulo de Frontin com versos do Poeta Gentileza e, em um dos muros, um grafite que o retrata. Bárbaro! 




Nas paredes externas da Usina de Asfalto, da Secretaria Municipal de Obras, do município do Rio de Janeiro, também têm grafites muito bonitos...




Mas ao longo da via que dá acesso ao Terminal Ferroviário da Leopoldina, as construções continuam largadas.
Enfim, o ônibus desce a Avenida Presidente Vargas e vejo os prédios de arquitetura americana, logo na entrada. E imediatamente, minha visão bate na nova passarela de pedestres, com estrutura pintada em cor bronze metálico, bem em frente à Prefeitura. Uma passarela que se destaca ainda mais quando observamos a seguinte que também atravessa a mesma avenida, visto à precariedade em que se encontra. 



Ao passar em frente ao local, lembrei-me que ali, onde ergueram os prédios da Administração Municipal do Rio de Janeiro, ficava a Vila das Mimosas, uma antiga e muito conhecida zona de prostituição. Num passado não muito distante de nossa história, e por algum tempo, o prédio principal ficou conhecido como "piranhão", e o anexo como “cafetão”.
É triste demais vermos que na mesma avenida de prédios luxuosos e uma passarela reluzente, o Hospital São Francisco de Assis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro parece uma casa mal assombrada de tão largada. E apesar das condições inadequadas, alguns serviços ainda são ofertados à população naquele local.



Agora em frente ao Campo de Santana, passo pelo prédio onde Deodoro da Fonseca teria proclamado a República e percebo que o parque é uma admirável república comunista, onde convivem as árvores, o lago, os patos, marrecos, cachorros, gatos, ratos, preás, pombos, pardais e até um pavão... Todos ali, no mesmo local, juntos, usufruindo do que o Campo de Santana tem para oferecer e, ao mesmo tempo, contribuindo para a sua preservação. Uma lição, não?
Estava entrando no que deveria ser o Centro Histórico do Rio, devido às memórias daquelas ruas e de seus  prédios. Lá estão a rua da Alfandega, a Moncorvo Filho, a Frei Caneca, Mem de Sá, Rua do Riachuelo e outras ruas transversais.


Falo da área que vai da Cidade Nova aos Arcos da Lapa, daquelas janelas antigas, dos flertes e das fofocas... As pequenas varandas. Fachadas do Século XIX, como a da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro. 


Apesar do inegável valor histórico do local, o que vemos: péssima preservação, comércio fraco, ruas sujas, insalubres, cheirando a mijo, algumas têm fezes pelo chão... Consequência, moradores sumindo.
Por ironia, na mesma região, temos também uma grande concentração de unidades de saúde: Hospital Souza Aguiar, Instituto de Hemoterapia (HEMORIO), Instituto de Endocrinologia (IEDE), o agonizante Instituto de Assistência aos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (IASERJ), Instituto Nacional do Câncer (INCA), Hospital da Cruz Vermelha, entre outras públicas e privadas. Se acrescentarmos os hospitais que ficam do outro lado da Avenida Presidente Vargas e se estendermos a nossa observação ao espaço que vai da Praça Mauá à Praça XV, perceberemos que ali há, talvez, a maior concentração de unidades do Sistema Único de Saúde - SUS - da cidade do Rio de Janeiro.
Já prestes a saltar naquele rio de descaso, fico a sonhar com a Cidade Histórica do Rio de Janeiro. Imagino as ruas limpas, pessoas andando a pé ou de bicicletas, crianças, jovens e adultos jogando capoeira na Praça Cruz Vermelha, muita gente nas calçadas ou curtindo um sambinha nos bares, passeando no Bondinho por cima dos Arcos da Lapa, tomando um chá na Confeitaria Colombo ou no Café Casè, aguardando a noite seduzi-las para o samba de gafieira no Elite ou na Estudantina, ou para o teatro de Revista no Rival. Quem sabe uma peça no teatro João Caetano, um cineminha no antigo Cine Odeon, um sambão de escola de samba no Sambódromo... Outros irão ouvir música na Sala Cecília Meireles, dançar um forró no Circo Voador, apreciar um recital dos alunos da Escola Nacional de Música...
Desço do ônibus pensando nos governantes e parlamentares que elegemos. Tropeço numa pedra e caio na real: 
- Levei duas horas e trinta minutos para chegar ao local!


 Luzia M. Cardoso
Crônica e fotos
Rio de Janeiro

domingo, 7 de agosto de 2011

Respeitar a liberdade de decisão ou internar compulsoriamente? As cracolândias em questão

Respeitar a liberdade de decisão ou internar compulsoriamente? As cracolândias em questão


Segunda-feira, 8:h30min. Saio do estacionamento em direção ao trabalho. No percurso, deparo-me vários corpos atravessados na calçada. Homens, mulheres, de diferentes idades, ali, largados no chão. Corpos sujos, roupas rotas, rostos inchados e inertes. 
Não, não vivo em um país em guerra. Não houve nenhum terremoto ou maremoto por aqui. Não, as pessoas ali largadas não estão mortas. A sensação que dá é que seus corpos viraram fardos de suas próprias almas. E aí, despidas da carne, as almas seguem a viagem alucinante.
Diferentemente de muitas pessoas em situação de rua, os dependentes de crack nem mesmo conseguem pensar em proteger-se, abrigando-se sob uma marquise, ou no canto da calçada, ou no banco de uma praça. Simplesmente, abandonam-se em qualquer lugar.
Encontrar corpos atravessados nas calçadas, em qualquer bairro da capital do Rio de Janeiro, já faz parte da rotina de quem anda pelas ruas. E as pessoas que passam parecem estar no mesmo transe que os dependentes químicos, como se a droga anestesiasse quem a consome e quem assiste os seus nefastos efeitos.
As pessoas no chão parecem ficar invisíveis. Não se nota mais se é adulto, criança ou adolescente. Se é homem ou mulher, se ela está ou não grávida. Parece não haver questionamentos se quem está ali dorme ou está inconsciente.
Teve um dia em que ouvi uma senhora dizer a outra que ao encontrar um adolescente nesta situação, ligou para o Conselho Tutelar, contudo, ela dizia que ao explicar a situação, ouviu da atendente que não deveria ligar lá, e sim para a polícia. 
Será que é caso de polícia as situações em que adolescentes, vencidos pelas drogas, largam-se nas calçadas? 
Naquele momento, ouvindo as senhoras conversando, lembrei-me do que soube acerca do entendimento de alguns abrigos sobre o direito de ir e vir de crianças e adolescentes, levando-os a não impedirem crianças e adolescentes abrigados de irem para as ruas, embora desacompanhados. 
Tenho a impressão de estar no avesso do avesso, como Caetano na Avenida São João. Acredito que se crianças e adolescentes estão em fase de desenvolvimento físico, mental, emocional e cognitivo, e por isso não respondem pelos próprios atos, sua liberdade deve ser supervisionada por seus responsáveis ou por um adulto por estes designado. Será que comprendo errado?
Estamos diante de compreensões? Então, convivemos com o entendimento de que adolescentes largados nas ruas, provavelmente sob o efeito de drogas, é caso de polícia, como convivemos com pessoas que acreditam que adolescentes e crianças abrigados têm o direito de saírem às ruas sem supervisão. 
Serão essas diferentes compreensões que definem a execução das políticas sociais? E o que fazer diante da epidemia que toma conta das periferias? Sim, das periferias, embora eu tenha a clareza que a droga extrapola fronteiras sociais, contudo, o que vemos nas periferias é em número assombroso. Há casos que em uma mesma família o crack está presente no cotidiano de jovens pais de crianças. A adicção, nesses casos, parece ser intergeracional e intrafamiliar.

Não tenho a menor dúvida de que temos que intervir nessa situação. Também não tenho a menor dúvida de que não devemos deixar ao relento, largados nas ruas, as vítimas do crack, de qualquer outra droga, ou por qualquer motivo. Atendimento no local, recolhimento, abrigamento, alimentação, roupas e assistência profissional devem ser ofertados, insistentemente, aos envolvidos. Digo, ofertar serviços insistentemente, não digo internação compulsória dos dependentes, apesar de saber que essa proposta vem sendo defendida por muitas pessoas e já executada na cidade do Rio de Janeiro. Entendo, no entanto, que todo e qualquer cidadão, quando nas ruas, largado no chão, deve ser conduzido a um abrigo, contudo, quando adultos, respeitando a sua liberdade e autonomia.
E com relação às crianças e adolescente? Ah, vejo que voltamos à questão já abordada aqui: o direito de ir e vir dessa parcela da população. Na minha opinião, esse direito implica também no dever dos responsáveis de garantir-lhes supervisão, pondo-os a salvo de situações de perigo e constrangimentos, intervindo em situações de risco, e estabelecendo o limite, sempre que necessário. 
Todavia, para que os responsáveis de crianças e adolescentes cumpram com as obrigações inerentes ao poder familiar, eles precisam de estabilidade, não só emocional, mas econômica e social. E aí temos uma outra questão. As condições de vida de muitas famílias residentes em periferias são desumana.s Muitos barracos sem reboco, com chão de cimento grosso, paredes úmidas, e sem um janela sequer. É inacreditável!!! Em muitas unidades residenciais a ventilação ocorre apenas por meio da porta de entrada. Algumas têm menos de quatro metros quadrados de área total. As ruelas são super-estreitas, há esgoto aberto, lixo largado em qualquer lugar. Em algumas comunidades, por serem verticais, o sol não chega às portas, os olhos não alcançam ao céu, e o horizonte... Ah, aí não há nenhum horizonte.
Penso que a epidemia do crack é sim uma questão de saúde e, por isso, a política de combate às drogas deve estabelecer programas nos três níveis de assistência: primário, secundário e terciário. Além das unidades de internação e tratamento para os dependentes químicos, a situação necessita de ações preventivas. 
Há, no entanto, que resgatar a definição de saúde presente em nossa Carta Constitucional e na Lei Orgânica de Saúde. Assim, tirar a cidadania do papel e materializá-la na realidade das periferias garantindo a todos o direito à moradia digna, à alimentação, ao trabalho protegido, devolvendo-lhes o ar, o sol, o céu e o sonho, torna-se indispensável para que todos os pais tenham condições de cuidar de seus filhos e poder mostrar-lhes o brilho e as cores do horizonte.

Luzia M. Cardoso

sábado, 21 de maio de 2011

E a Cidadania Ficou no Papel

"Crônicas do Cotidiano" - Edição 2011
E a Cidadania Ficou no Papel




Alguns programas de televisão costumam apresentar cenas do cotidiano de pessoas que estão alijadas de seus direitos sociais, objetivando levar-nos, passíveis telespectadores, à muita emoção. E assisti, recentemente, a um desses programas, que no dia foi protagonizado por uma família de um bairro popular, da cidade de Cascavel, no Paraná. Durante a exposição da história, pelo apresentador, vários aspectos chamaram a minha atenção, e que gritam pela atenção de nossos governantes. Logo na chamada do programa, mostravam adolescentes abrigados, devido à falta de recursos de seu pai, um ex-trabalhador rural, já idoso, cuja mulher teria abandonado a família antes do processo de abrigamento dos filhos. E a realidade dos adolescentes era exposta em rede nacional, à revelia de seus direitos de ter a situação tratada em sigilo de justiça.
Mais, a justificativa apresentada para perda do poder familiar por parte do pai, e que teria resultado no abrigamento das crianças e adolescentes, foi a falta de estrutura econômica e residencial, ou seja a extrema pobreza da família, apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 23, determinar que " A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do poder familiar".
Nesse momento, uma interrogação insistia em saltar de minha cabeça:
- Se não havia outros motivos que colocassem em risco as crianças e adolescentes envolvidos, o que ocorreu com o direito dos mesmos assegurados pelo artigo 19º, do referido Estatuto, que garante-lhes o direito de serem em criados e educados no seio de sua família?
A fim de garantir os direitos sociais, o Capítulo dos Direitos Sociais e da Ordem Social, de nossa Constituição, aponta como dever do Estado elaborar Serviços e Programas, por meio da Política de Assistência Social, objetivando ofertar os recursos necessários sobrevivência de pessoas em situação de extrema pobreza. Para operacionalizar essas ações, foi promulgada a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), aprovada a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), organizado o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), estabelecendo seguranças, garantidas por meio de programas, ações e benefícios, como os dois que destaco aqui:
1- O Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é destinado às pessoas com necessidades especiais e, quando adultos, também considerados incapacitados ao trabalho, e aos idosos. Apesar de em ambos os casos, haver critérios de inserção, sendo um deles a renda per capita familiar inferior a 1/4 do salario mínimo. Contudo, o valor assegurado pelo BPC é de um salário mínimo mensal;
2- O Programa Bolsa Família (PBF), que é direcionado à família com renda per capita de até R$ 70,00, ofertando um valor básico por família, também de R$ 70,00. Além dos valores variáveis que vai de R$ 32,00 até R$ 172,00, conforme os critérios previstos.
No caso da família de que tratou o programa, ela estaria no perfil para receber os dois Benefícios, tanto o BPC, já que pai dos adolescente tinha mais de 60 anos de idade, quanto o PBF, pela situação de extrema pobreza.
E ali, diante da cena, e dos conjunto de leis e Estatutos de Direitos existentes em nosso país, a minha cabeça mais parecia uma cama elástica. Insistiam em salta incontáveis interrogações, acompanhadas pelas exclamações, vermelhas de indignação.
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Como é cruel a realidade de inúmeros cidadãos brasileiros, alijados dos recursos existentes. Deixamos os direitos sociais à sombra, enquanto lágrimas rolam de nossos olhos.

Luzia M. Cardoso

RJ, 21 de maio de 2011

(Texto revisado em 16/06/2011)

sábado, 15 de janeiro de 2011

O ENCONTRO

O ENCONTRO


Luzia M. Cardoso
Rio de Janeiro, Janeiro de 2011



Mal dei-me conta de haver chegado à página final de «O espelho», um conto de Machado de Assis, levantei os olhos e percebi que tudo à minha volta havia mudado. As paredes estavam avermelhadas. Estranhei. Quase em simultâneo, a minha atenção foi alterada por um ruído monótono, insistente e ritmado. Tentei ignorá-lo e compreender o que acontecia. Não só as paredes haviam mudado de cor, tudo estava diferente: o corredor estreitara-se, as portas tinham sumido e todas as entradas arredondaram-se. O local estava vazio. Só o ruído ecoava alto, muito alto. Também o ruído dos meus passos rebatiam nas paredes, retornando como bumerangue aos meus tímpanos. Minha respiração assemelhava-se ao uivo do vento no vácuo entre as montanhas.
Obstinada, mantive-me no objetivo do reconhecimento do local. Via várias peças, algumas esverdeadas, com surtons que lembravam o marrom, contudo, predominavam as nuances do vermelho.

Tudo estava úmido, intenso e na penumbra. Vez por outra, notava certo brilho, como faíscas azuladas. De repente, novo susto: a instalação hidráulica e a elétrica estavam expostas. Seria possível? Precisava de descansar. Tudo era ou me parecia sobrenatural, além de haver coisas que insistiam em grudar em mim, por mais que as expulsasse. Deveria estar alucinando.
Na busca de refúgio, deparei-me com um foco luminoso. Para lá quis ir. Tentei correr, apesar das limitações impostas por um emaranhado de fios grudentos que em mim enrolavam-se. Num esforço sobrehumano, entre idas e vindas, feita io-iô, arrastei-me... Mas o ruído, aquele ruído monótono, insistia:  
Tum, tum, tum... Tum, tum, tum.. Tum, tum, tum... Tum, tum, tum..
Cada vez mais alto...
TUM, TUM, TUM... TUM, TUM, TUM... TUM, TUM, TUM...
Cada vez mais forte...
"TUM, TUM, TUM...
TUM, TUM, TUM...
TUM, TUM, TUM...
 
E cada vez mais próximo...
TUM, TUM, TUM. . .
TUM, TUM, TUM...
Desesperei-me e briguei. Arrastei-me... arranhei-me... lambuzei-me ... ignorei-me... Ahhh!
E um Tum, tum, tumtomava conta de mim, possuindo-me... e, filtrando-me, incorporava-me e expulsava-me.
Sem sequer entender como, vi-me no meio de uma esfera gelatinosa, um corredor estreito e escuro. Em uma das extremidades havia um feixe de luz, que ora aumentava, ora quase sumia. Continuei arrastando-me, pois precisava encontrar uma saída. Já estava sufocada. 
 
Para minha surpresa, deparei-me com uma parede gelatinosa e transparente. Ali, fiquei, de mãos espalmadas, nariz grudado e olhos esbugalhados.

“Cada criatura humana traz duas almas consigo:
uma que olha de dentro para fora,
outra que olha de fora para entro...”



Fim

Referência Bibliográfica.

ASSIS, Machado. O Espelho. In, Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II.
Disponível em

domingo, 2 de janeiro de 2011

Aos Pés do Flamboyant

Aos Pés do Flamboyant



Luzia M. Cardoso

RJ, Janeiro de 2011






O corpo negro da noite espreguiça-se, acordando vagarosamente. Expande-se, permitindo a penetração dos fios prateados da lua que salta sobre ela, rodopiando, bela e cheia. Um cenário perfeito para uma noite de amor.
Último dia de um ano nos últimos suspiros. Estamos na Lapa, centro histórico da Cidade Maravilhosa, com sobrados do Brasil Colônia em péssimas condições, apesar da fachada ser patrimônio histórico nacional. Como pão bolorento, eles estão com o interior úmido, mofado, instalações elétricas sem manutenção, com muitos fios expostos, desencapados...
João caminha pela rua do Riachuelo, em direção aos Arcos da Lapa. Alto, magro, pele casca de kiwi e cabelos sedosos e pretos. Os olhos negros parecem que foram recortados da noite, e o sorriso branco, com dentes perfeitos, tdevem ter sido esculpidos, um a um, em alguma pedra lunar.
Se não estivéssemos no século XXI, imaginaríamos esse homem trajando um terno branco de linho amassado, sapatos bicolores, com chapéu, também branco, tipo Panamá, levemente caído sobre a testa. Mas esse não é o João que entra em 2011.


A rua fica deserta, como sempre acontece ao desabrochar as noites de feriado. O movimento, cavalheiro, aguarda o amadurecimento da dama, enquanto João anda a passos rápidos e gingados. Tem pressa. Dobra à esquerda, depois à direita, e chega à rua Mem de Sá, já suada com a garoa. Pára em frente ao sobrado onde mora. Abre a porta de madeira, pintada de azul anil, que junto com a janela, também de madeira e na mesma cor, adornam a faxada marfim.
A chão da sala de tábua corrida, sem brilho, caduca, ranheta com o peso dos pés de João. As paredes lembram o ápice do outono, quando as folhas desbotadas caem, deixando o tronco despudoradamente nu, aos caprichos do vento. O teto ainda está forrado por lâminas de madeira, pintadas de branco, ao centro, balança um fio solto com uma lâmpada fluorescente pendurada. Determinado, entra na cozinha, velhos azulejos, ainda azuis, assistem João procurar por uma caixa de fósforos e por velas brancas.


- Onde estão? Nunca as encontro quando preciso.
Enfim, apalpando o fogão de duas bocas, à gás de botijão, encontra os fósforos.
- E as velas?
A última das cinco caixas de velas brancas que comprou no último vinte e nove ainda está caixa lacrada, dentro do velho armário também azul, preso no alto da parede da cozinha.
João pega as duas caixas, a de fósforos e a das velas. Caminha em direção ao quarto. Sobe a escada de degraus de madeira, que também gemem à sua passagem. Percorre um corredor sombrio, estreito, e entra no quarto. Móveis de jacarandá, antigos: um armário de duas portas, um espelho de cristal decorado, à frente de uma delas, e uma cama de viúvo, ao fundo.
João abre o armário e retira as peças de suas vestes de noite. Arruma, cuidadosamente, uma a uma sobre a cama. No armário, ao alto, pega uma caixa com sapatos. Depois, puxa a primeira gaveta. Lá estão as meias, e logo, na gaveta seguinte, pega as roupas íntimas.
Sai do quarto, dirige-se ao banheiro. Abre o chuveiro elétrico, inoperante, e rápido, banha-se em ducha fria. Estava cansado, pois trabalhou a noite anterior, de dezenove horas as sete de hoje, emendando com o plantão que seria do colega, a pedido do mesmo, saindo ainda há pouco, as dezenove horas.


- Joguei pedra na cruz.
Reclama e enrola-se em uma toalha branca, nova. Começa a produção: primeiro as peças íntimas, também novas, rendadas; agora a meia de seda transparente; entra no vestido branco, grudado ao corpo, com um insinuante decote nas costas. Calça os sapatos vermelhos, salto quinze.
- Ssssssmac!!!! Belíssima!!!!!!
Um curto circuito, há dois dias, deixou os sobrados do quarteirão sem luz, por isso, João arruma-se à luz de velas. Acende mais duas, para melhor visualização, posicionando-as bem perto do espelho, Como um exímio cirurgião, com gestos precisos e delicados, pinta o rosto. Primeiro a base, retirando as imperfeições e disfarçando os vestígios de barba. Passa ligeiramente o pó, e contorna os olhos com lápis preto. Cola os longos cílios postiços. Nas pálpebras, dois tons de cor...
- Cinza-chumbo e prateado... Que show!!
Passa o blush e o batom...
- Hum, contornarei os lábios com lápis para aumentá-los, ficarão mais atraentes.
Arruma a peruca longa de fios acobreados... Por fim, cola, uma a uma, as unhas longas e pretas.
- Uau, que gata!!!!!!
Pega a bolsa de mão, da cor dos sapatos, e sai linda, sensual, ao som malandro do bairro boêmio, atraindo para si todos os olhares, sendo assediada pelos homens que passam em seus carros...
- Gostosa, quer passar o Réveillon lá em casa?
- Uau, essa é a nora dos sonhos de meu pai!
Sorri, um sorriso maroto, de canto de boca, discreto, próprio à mulher fiel e comprometida. Nesse momento, uma flecha atravessa seu pensamento:
- Que falta de criatividade, essas cantadas são mais velhas que a própria Lapa. 
 
Segue, chega à linha férrea para Santa Teresa. Senta-se, cruza as pernas, delicadamente, ao balanço do bondinho.
- Que noite linda!
Seus olhos perdem-se no mirante iluminado do Rio de Janeiro, enquanto, no céu, abrem-se milhares de olhos do universo.
- Consegui... Bem na hora!
Murmura, achou que não chegaria no horário. Salta do bondinho, aos pés do florido flamboyant. Entra na casa de show... Luz negra, holofotes... Passa, cumprimentando a todos os presentes.
- Vamos, vamos, querida!
Entre beijos, as amigas a aceleram. Sobem a escada lateral do palco. Posicionam-se na ribalta apagada, e João fica de costa para o público, e de frente para os músicos. As cortinas estão cerradas, abrindo-se de repente. As luzes acendem-se, e ela é ovacionada. Tigresa, vira-se, lentamente, para a platéia. Um frisson!
Com os olhos ávidos, percorre cada cadeira, cada mesa, canto a canto do salão, procurando por alguém. Suspira...
- Ahhhh, lá está. Então veio.
Temia que não viesse, pois tiveram uma briga feia ao revelar-lhe ter retornado aos shows. Conheceram-se na universidade, quando cursava medicina e seu grande amor estudava psicologia. Ambos exercem a profissão, trabalhando em hospital público.
No palco, agora estrela, está inacreditavelmente mais radiante, feminina, sua voz é suave e afinadíssima. 
 
Exigente, selecionou o próprio repertório para esse dia especial. Canta Chico Buarque, Caetano Veloso, Tom Jobim, Vinícius de Morais. Sai da bossa nova, cai no samba de Zeca Pagodinho e Martinho da Vila.  Volta ao MPB, e interpreta Elis Regina, imita Alcione, Maria Betânia, Adriana Calcanhoto, Ana Carolina e Rosa Passos. 
 
Ahhhh, é o ápice de seu número, canta Stani Amori,  de Laura Pausini, em perfeito italiano, e de olhos fixos nos olhos mel do amor. Pura emoção!
- Bravo!!!! Bravíssimo!!! Bis!!!!!
Grita a platéia enlouquecida. Indiferentes às súplicas, aos aplausos, aos assobios e aos pedidos de bis, as cortinas caem, pesadas, implacáveis.
A estrela desce e no camarim, despe-se e troca de roupa. Caminha em direção à razão de sua vida, que o recebe com duas taças de champanhe.
Ambos no salão, à meia luz, a poucos passos da meia noite, juntos a todos, mas pareciam estar a sós. Olhos nos olhos, taças transbordantes nas mãos, braços entrecruzados, juntos acompanham a contagem regressiva...
- Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um... Feliz 2011!!!!
- Feliz Ano Novo!!!


(Trata-se de um conto, nesse sentido, é uma ficção. Qualquer semelhança com a realidade é apenas uma coincidência)


  Publicado pela CBJE, em Grandes Contos de Autores Brasileiros