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sexta-feira, 2 de julho de 2010

UM DESASTRE QUE ABALOU AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

UM DESASTRE QUE ABALOU AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS


Era um belo dia de sol e eu estava lá na praça situada nas proximidades de minha casa, acompanhando as atividades oferecidas pela associação de moradores. Tratava-se de uma praça bem cuidada, pois havia funcionários contratados para a sua manutenção. Gratuitamente, era oferecido aos moradores karatê, futebol de salão, futebol de campo, ginástica.
O pobrema é que haviam muito movimento de carros, de vido ao shopincente que tinha em sua proximidade. Era frequente as freiadas bruscas, encima dos transeunte que passava no local.
Num desses dias, se ouviu, derrepente, um plaft..tum... E todos nóis saimos para ver o que tinha ocorrido. Tava lá um omen estirado na rua, todo sanguentado... O carro, acelerou e a motorista saiu na maior disparada.
O movimento aumentava e as pessoas que estava entertida com o laser da praça, pois-se a se amontoar ao redor do atropelado.
Era um tal de chamá médico, bombero... de saber quem era o morimbundo...Até que alguém reconheceu ele e disse:
- Gente, é o francês da loja de bijuterias!
Nóis fomos todos avisar a famílha, enquanto a ambulância socorria o acidentado e levava ele para o prontossocorro.
Esse acidente, por sua gravidade, envolveu a polícia, com depoimentos dos presentes, registro de ocorrência, apreensão do veículo e... inclusive, com a avaliação do consulado dos dois países envolvidos nessa colisão, cujos representantes reclamavam uma maior atenção do governo brasileiro para o fato, solicitando ações preventivas para que tais atropelamentos não mais acontecessem.
O governo brasileiro, assim que soube da gravidade do problema, acionou imediatamente o ministério específico, pois o pobre do português atropelado estava muito mais grave que o inglês que sofreu escoriações leves.
Segundo as entrevistas dadas pelos especialistas na área, o coitado do português estava agonizando, com ventilação mecânica, internado no CTI... A avaliação dos técnicos apontava problemas de estrutura e forma, atendidos pelo orto, além de outros relacionados a ligamentos, comprometendo a concordância.
Como narradora dos fatos, após publicar o texto, fui também chamada para  prestar depoimento. Queriam saber se era caso de dolo ou de culpa e qual era o meu envolvimento no acidente multinacional.
Reproduzo, então, a minha fala junto às autoridades:
Senhores, há muito tempo que percebo tais atropelamentos. As causas são as mais diversas, mas suas raízes estão na nossa Educação, na formação de crianças e jovens.
Na atualidade, a rapidez dos meios de comunicação apresentada pelo msn, orkut etc. possibilita um maior negligenciamento no formato e nas regras da comunicação, oral e escrita. Esse fato tem contribuído para reforçar e reproduzir uma escrita com códigos e formato gráfico diferentes do oficial.
Por outro lado, quando ouvimos com atenção a linguagem falada, que é muito dinâmica, percebemos que a pronúncia das letras e das sílabas mudam de região para região, levando os incautos a reproduzirem-na também  na escrita. Evidentemente, se já atropelávamos o português, com a facilidade de acesso a outras culturas e línguas, também colidiremos com as de outras nações.
Nesse sentido, senhores, entendo que o acidente é fruto de um longo processo de negligenciamento de setores governamentais e da sociedade, necessitando de uma revisão urgente de todo o sistema educacional brasileiro.”
- Mas, e o francês?
- Ah, o francês... Ele só tinha desmaiado de susto quando viu o acidente.
- E o sangue que o cobria?
- Não era sangue. Era tinta. O francês é também um artista. Ele pinta quadros.
Observação: Caso alguém perceba outros problemas presentes no referido atropelamento, principalmente os causados pela minha ansiedade em postar o caso, por gentileza, me informe, pois os acidentados ainda estão em atendimento especializado.

Por Luzia

O COTIDIANO DE UMA TRABALHADORA SOCIAL

O COTIDIANO DE UMA TRABALHADORA SOCIAL


Shirley é uma trabalhadora brasileira, como muitas outras. Formou-se e conseguiu emprego na profissão, por meio de aprovação em concurso público. Ainda hoje, no Brasil, o setor público, principalmente o de serviços, é o que mais contrata na sua especialização do trabalho coletivo. Apesar de o Estado ser o principal empregador, e talvez por isso, o valor do salário de seus trabalhadores tem sido o mais atingido pelos interesses econômicos e políticos do grupo hegemônico.
Casada e mãe de dois filhos, o salário de Shirley compõe a renda familiar com o marido, professor. Somados, os salários não chegam a dez salários mínimos.
Devido aos altos valores imobiliários, e por investirem na educação dos filhos, o casal não conseguiu comprar a sonhada casa própria, pagando um aluguel no valor de dois salários mínimos. Os gastos domésticos consomem uma importante parte da renda familiar: despesas de condomínio, no valor de um salário mínimo; a educação dos filhos leva cerca de cinco salários mínimos - pois para o casal poder trabalhar precisa de escola em tempo integral.
Há ainda os gastos com a alimentação, roupas, transportes, energia elétrica, entre outras. Acrescentam-se as despesas necessárias a tão discutida inclusão digital, da qual ninguém pode mais ficar excluído.
Com uma carga horária de quarenta horas semanais de trabalho, Shirley e o marido acordam, diariamente, as cinco horas da manhã. Iniciam o dia organizando a infra-estrutura doméstica, viabilizando, dessa forma, as condições necessárias à frequência ao trabalho e a escola, para os filhos.
Shirley vai para o trabalho de ônibus, levando cerca de sessenta minutos, no percurso de ida e volta. Inicia sua jornada de trabalho no momento em que chega ao local, embora devesse começar as oito horas. Esse fato ocorre porque sua atividade profissional implica na relação com pessoas com necessidades das mais diversas que, talvez pelo sofrimento, não a percebem  como um trabalhador, que tem hora para iniciar a jornada e hora para terminá-la, sendo vista como a boa moça pronta para ajudar.
A instituição, onde Shirley trabalha, está organizada para cumprir os objetivos de seu processo de produção, no qual seu trabalho, na maioria das vezes, é apenas um trabalho complementar e tratado como secundário. Nesse sentido, a infra-estrutura para que desempenhe suas tarefas é muito precária: insuficiência de instrumentos de comunicação para com outras instituições; escassez de materiais para a elaboração, organização e para o registro do trabalho; falta de transportes para as visitas domiciliares e institucionais; e, o que é mais grave, falta de local adequado para o atendimento à população, e que resguarde o sigilo necessário ao que é revelado aos profissionais. Muitas vezes, para conseguir levar a termo o objetivo de seu trabalho, Shirley compra, com recursos próprios, os meios de que necessita.
Shirley atende às pessoas que chegam por iniciativa própria, encaminhadas por outros profissionais ou convidadas ao atendimento, pela própria profissional. A partir da necessidade apresentada pelo usuário/contribuinte/cidadão (Shirley está traumatizada com a palavra cliente), ou pelo fato que levou o mesmo à instituição, ela busca conhecer melhor sua realidade e a natureza dos fatores que contribuem para alguma situação de risco social.
A aproximação desse profissional a uma outra realidade, diferente da sua, ocorre apor meio da investigação (também científica). Para tanto, Shirley utiliza-se de técnicas, elabora instrumentos de coleta de dados, lê e escreve em prontuários, planeja a observação e as visitas domiciliares, prepara reuniões, pensa nas abordagens que terá com a população etc. Todos esses meios possibilitam a compreensão dos fatores sociais, econômicos, culturais, familiares, entre outros, que estão determinando ou agravando uma dada realidade.
Com esse processo de aproximação e de conhecimento da forma de vida do usuário/contribuinte/cidadão, Shirley identifica as prioridades deste e, juntos, selecionam os recursos disponíveis para modificarem os principais fatores que levam a risco social, ou aqueles que se apresentam mais urgentes e viáveis, a curto prazo.
Muitas vezes, para modificar um fator econômico, Shirley utiliza alguns programas governamentais, bem como outros oferecidos por instituições filantrópicas. No caso da política de assistência social brasileira, na maioria das vezes os programas não atendem à demanda, ou têm uma porta de entrada muito estreita e, por isso, trabalhadoras como Shirley sentem-se completamente impotentes.
Para o competente uso de seus instrumentos de trabalho, Shirley busca conhecer alguns conceitos da psicologia e da antropologia, além de outros próprios à sociologia e ao direito. Com esse aporte teórico e metodológico, Shirley tenta que sua ação profissional não seja determinada por valores pessoais e morais, ou por preconceitos e senso comum.
O conhecimento acerca de direitos sociais e da legislação existentes ajuda na compreensão do alcance dos instrumentos de comunicação e de intervenção ,construídos para possibilitar o acesso do usuário/contribuinte/cidadão aos direitos do qual possa estar excluído.
Shirley sabe que nenhuma ação é neutra e por isso busca maior consciência das consequências da lógica que imprime à intervenção, bem como à redação de seus documentos.
Além do atendimento ao público, Shirley também supervisiona estagiários. Esta outra atividade implica em estabelecer relações, diretas e indiretas, com as unidades de ensino de nível superior.
Para a atividade de supervisão de estagiários, Shirley precisa dominar alguns recursos da pedagogia, visto que deverá colocar ao alcance da compreensão dos alunos/estagiários o referencial teórico e a metodologia que utiliza, além de precisar desenvolver métodos e instrumentos para a avaliação desses outros consumidores de seu trabalho: os alunos/estagiários.
Para Shirley, essa relação com as unidades de ensino é bastante conflitante, visto que as Escolas parecem reforçar a divisão entre o trabalho “manual” - aquele que é executado junto à população - e o trabalho “intelectual” - aquele que ocorre no interior das unidades de ensino. Parecem atribuir poder, valor e status diferentes a esses trabalhadores, conforme a lógica da divisão social do trabalho.
Nesse sentido, muitas vezes a relação entre os profissionais “de ensino” e os  “da execução” ocorre de forma intrigante: os primeiros parecem que querem  (re) ensinar “como fazer”, ou que querem “capacitar” novamente os segundos, às vezes entendendo que os alunos/estagiários podem auxiliar em tal objetivo.
Para Shirley, há um certo estranhamento entre professores e os profissionais da "execução"; entre o produtor e seu produto; entre o criador e a criatura, já que alguns professores não se reconhecem ao se depararem com as atividades desenvolvidas por seus ex-alunos.
Shirley não sabe se, como diz Caetano Veloso, “Narciso acha feio o que não é espelho”, ou se ocorre, na academia, o mesmo processo de alienação que se dá com qualquer outro trabalhador quando se depara com o produto final do trabalho coletivo: não identifica o parafuso que apertou.
Consequência também do estranhamento entre o trabalhador e o produto final é a forma como os alunos/estagiários chegam ao campo de trabalho de estágio. Com algumas exceções, na maioria das vezes, o aluno apresenta uma leitura estereotipada do supervisor, construída, provavelmente, durante o seu processo de formação profissional.
A partir de uma visão preconcebida “da prática”, os alunos/estagiários tentam inverter a lógica da relação inerente ao processo de supervisão: em vez de chegarem para aprender, chegam para ensinar, com um discurso carregado de eufemismos: “queremos trocar/oxigenar o trabalho do profissional.”
Shirley já teve problemas com estagiários que imprimiam à relação um traço de desrespeito, predominando uma espécie de “ética para os outros”, criticando, em sala de aula, a prática de seus supervisores, sem tomar  cuidado de pedir autorização para divulgar o trabalho e a identidade do mesmo.
Legitimando a diferença e o valor do trabalho entre aquele que está “no campo” e o “da academia”, em muitas Escolas, é o professor, dentro das unidades de ensino, quem avalia, aprova e reprova o aluno na disciplina de estágio supervisionado. Apesar de tais experiências ocorrerem no interior de outra instiuição, denominada de campos de estágio, e, portanto, distantes dos olhos e dos ouvidos dos professores.
Assim, o trabalho do supervisor parece ser desvalorizado, quando em relação ao do professor, embora seja indispensável para legitimar o diploma dos novos profissionais. Contudo, parece não haver dúvidas com relação ao valor-de-uso do trabalho desse profissional, porém, parece haver ainda uma espécie de negação acerca do valor-de-troca dessa força de trabalho.
Shirley, como qualquer outro trabalhador, vivencia vários conflitos em seu local de trabalho, seja devido à implantação de novas tecnologias gerenciais, e ao autoritarismo nas relações de poder interprofissionais, inerentes à divisão social e técnica do trabalho.
Outras tensões perpassam o trabalho dessa trabalhadora: o conflito na relação intraprofissional, próprio à interação entre o antigo e o novo, entre a ação e a intenção, entre o crítico e o reacionário, além de outros conflitos resultantes de um mundo de trabalho marcado pela competitividade.
Como se não bastassem todos esses elementos presentes no processo de trabalho de Shirley, ela ainda convive com a angustiante discussão no campo acadêmico sobre se a profissão que escolheu é ou não considerada trabalho, se é ou não uma atividade produtiva.
Um dia Shirley foi questionada sobre a tão discutida “Questão Social”, e assim respondeu:
- “Me sinto como uma formiga, trabalhando no solo. Faço buracos, carrego folhas, adubo a terra, além de várias outras atividades. Sei que existem também outros animais que transformam este mesmo solo: tatus, tamanduás, elefantes e muitos outros. Muitas vezes, devido à distância, não percebemos o que modificamos. Em outras, quando  ficamos muito perto, não gostamos do odor ou da cor que produzimos. Contudo, gostando ou não, o solo é modificado por um trabalho coletivo e nunca é o mesmo solo no momento seguinte”.
E mais um dia de trabalho de Shirley chega ao fim, ou melhor, finda a primeira jornada, pois a segunda (a organização da vida doméstica), a terceira (o acompanhamento das atividades escolares dos filhos), e a quarta (a atualização teórica e metodológica), ela desempenhará em sua casa, nos horários destinados ao “descanso.”
Frequentemente, Shirley sai do trabalho com uma forte enxaqueca e se queixa de fadiga e estresse. Como é adepta da medicina alternativa, não vai ao médico, acreditando resolver seus problemas de saúde com do-in, açaí e maracujá. Conhece colegas que, também numa prática equivocada de automedicação, utilizam medicamentos da alopatia, inclusive ansiolíticos.
Em seu trajeto de volta para casa, Shirley se lembra de sua rotina de trabalho e confronta com outras que conhece do relato de colegas que trabalham na mesma atividade, embora em outros locais. Sabe, contudo, que apesar das diferenças elas têm muitas coisas em comum.
E no interior do ônibus, já completamente embriagada pelo cansaço, mas sorrindo, Shirley pensa em todas e em todos os colegas e, parodiando Martinho da Vila canta:

Na maioria mulheres
de todas as cores,
de várias idades,
lendo muitos autores...
Umas até
certo tempo encararam.
Outras, logo
se deseperaram
Mulheres casadas,
e equilibradas.
Mulheres solteiras,
ou por um triz.
algumas cabeças
determinadas,
tem tantas outras
alienadas
Mulheres de garra
e determinadas
Ma, todas perguntam:
Como construir a utopia
que a teoria traz?
Procuramos
discutindo as correntes
Transformar a realidade.
Mas nos frustramos,
ficamos na saudade.
Vai começando bem,
mas tudo tem um fim.
O salário é
o pão de nossa vida,
essa é que é a verdade.
É e só com muita luta,
e não apenas com a vontade,
que construiremos, um dia,
o que sonhamos, enfim.

Por Luzia

ELA É SUPER!

ELA É SUPER!




São seis horas da manhã quando toca a campainha do celular. Ela pula a cama, toma seu banho, se arruma e acorda o filho para ir à aula. A hora parece correr, pela manhã. São 6:h45min. e Carolina tem apenas quinze minutos para chegar à escola onde o filho estuda. Corre. Enfim, está lá. Seu filho lhe beija o rosto. Responde com outro beijo.
- Deus te abençoe.
Carolina continua a correr. Agora tem que vencer o trânsito do Rio de Janeiro. É hora do rush. Precisa chegar em seu trabalho até 7h30min.
- Será que ela consegue?
Você tem dúvidas? Sim, Carolina parece a deusa do tempo e chega no horário.
Entra em sala. Carolina também é professora. Seus alunos, sentados em suas carteiras, aguardam sua chegada. Ela olha com afeto aqueles rostos pré-adolescentes, cujos hormônios rebeldes insistem em denunciar a sua ação.
Aula de história. O que o mundo antigo tem de interessante para aquele grupo que cresce no mundo de máquinas eletrônicas, da comunicação rápida, num diálogo sem fronteiras, sem limites impostos pelo tempo e pela distância? São alunos que adoram a TV à cabo, atentos aos desenhos animados japoneses...
Mas, a jovem professora está totalmente linkada à nova era e começa a contar, como quem narra um filme de ação, como os Deuses gregos contribuíram para a guerra de Tróia:
“ ... Helena e Era disputam o título da mas bela deusa, mas Afrodite acena a Páris com amor da mais bela mulher do mundo, em troca do título almejado pelas musas do Olimpo. De repente, movidos pelo poder da deusa, os raios do amor se dirigem à Helena.”
- Helena, a esposa do rei de Esparta?
Pergunta-lhe um dos alunos.
- Sim! E vejam como se vingaram de Páris, as duas outras deusas preteridas.
Páris se apaixonou pela esposa do rei de Esparta e fugiu com ela, levando-a para Tróia. O rei, enfurecido, convocou os soldados espartanos para invadir Tróia. E assim, começou a guerra...”
Final da aula. Fim de mais um dia de trabalho. E, novamente, Carolina corre..., Agora para pegar o filho na saída da escola.
Ao chegar, depara-se com os olhos confiantes de sua criança que lá estava aguardando a mãe. Ele entra em seu carro e, imediatamente, lhe pergunta:
- Mãe, o que devemos buscar, a sabedoria ou a riqueza?

Por Luzia

CAPUZINHO LILÁS

CAPUZINHO LILÁS






Era uma vez uma menina de cerca de 8 anos e que se vestia, sempre, com uma blusa lilás, com capuz. Todos a conheciam como Capuzinho Lilás.
Capuzinho Lilás vivia com sua avózinha, pois a mãe foi para fora do país, tentar uma vida melhor. Não conheceu o pai, talvez, nem mesmo a própria mãe o conhecesse.
Capuzinho Lilás residia às margens de uma floresta cinzenta, desencantada, com altos espigões e raras árvores. A menina não morava dentro da floresta, mas na periferia. Em sua casa, não tinha quarto, não tinha janela, não tinha nada... Também não tinha a poesia daquela da Rua dos Bobos. Sua casa tinha um único cômodo, paredes de tijolo sem reboco, infiltrações no teto, chão de cimento grosso.
Capuzinho Lilás não via o sol, nem de dentro e nem de fora de sua casa, pois outras casas brotavam de todos os lugares. Como não havia mais espaço para as construções se expandirem horizontalmente, elas subiam numa velocidade atroz. Assim, o sol não conseguia visitar essa criança, como também não visitava as outras que ali moravam.
Capuzinho Lilás não sonhava. Seus sonhos não vinham e não era apenas porque ela ouvia, noites e dias, os sons das metralhadoras, granadas e outras armas de fogo presentes em muitas Faixas de Gaza brasileiras. A falta de sonhos de Capuzinho Lilás não ocorria também somente devido às gargalhadas histéricas produzidas pelas drogas que rolavam soltas no local. Capuzinho Lilás não sonhava porque via seus colegas saindo em urnas fechadas para nunca mais voltarem.
Capuzinho Lilás nunca viu o horizonte, desconhecia que o céu é azul, que a lua é dos poetas, que no final do arco-íris tem um pote de ouro e que a chuva é de prata...
Capuzinho Lilás nunca teve medo de lobo mau, pois conheceu vários lobos muito cedo, quando era forçada a trocar afagos indecentes por bombons ou algumas moedas que levava para casa. Quando ia para a rua, Capuzinho Lilás não encontrava ninguém que a alertasse dos perigos, talvez porque todos os possíveis estivessem ali mesmo.
Capuzinho Lilás não procurava atalhos, pois nunca tinha certeza para onde ia ou se retornaria. Essa criança não levava cesta de frutas na mão, mas um pacote de bananadas, ou paçocas, ou jujubas, ou.... E deveria despachá-lo nos sinais de trânsito e levar, em troca, uns trocados para a vovozinha que ficava em casa com os irmãos e primos menores. Se por algum motivo Capuzinho Lilás retornasse com os doces, levava uma surra.
Devido a sua vida sem cores, ela carregava uma latinha com uma espécie de massa de cheiro forte que levava sempre ao nariz. O pó que conhecia não era o de pirlimpimpim, e a pedra que chegou a sua mão não era mágica... Com frequência, ficava pelas ruas, com outras crianças que não voavam como Peter Pan. Na rua, dormia coberta por jornais, embaixo de alguma marquise.
Capuzinho Lilás não conheceu fadas, nem príncipes, apenas os sapos e as bruxas. Não ouvia fábulas, pois o conto que vivia estava para lá dos da Carochinha... Parecendo não ter fim. Sua labuta era dura, e certamente a Gata Borralheira, ao seu lado, se sentiria a mais sortuda das meninas.
Um dia, Capuzinho Lilás, ao sair para vender suas bananadas, sentiu uma espécie de pancada no peito... E, então... nunca mais... Capuzinho Lilás.


Por Luzia