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segunda-feira, 13 de maio de 2024

Presente de Dia das Mães

 



Ano passado eu me vi às voltas com a busca por um presente para mamãe. Foi o presente mais difícil de encontrar em todo os meus 62 anos.
Na iminência da grande partida de mamãe, o que eu poderia dar e que ela pudesse levar consigo?
Cheguei a comprar uma bolsa de algodão cru, tipo sacola, daquelas que vendem em barraquinhas de rua. A que eu comprei vinha com um dos versos da música de Roberto Carlos "Como é grande o meu amor por você".
Não me senti satisfeita. Não tinha certeza que mamãe conseguiria levar com ela quando o seu trem chegasse.
Naquele Dia das Mães de 2023, antes de ir para a sua casa, passei na feira, como faço aos domingos. Na esquina da rua tinha uma kombi vendendo bichinhos e bonecos de feltro. Quando vi aquele coração rosa cheio de abraços e beijos, não tive dúvidas: aquele era o presente que ela levaria consigo para a eternidade.
Aquele coração repleto de abraços, beijos e um eloquente "te amo" desde aquele Dia das Mães de 2023 sempre esteve com mamãe.
No dia 26 de setembro, na hora de mamãe embarcar, coloquei o coração próximo ao seu peito, antes de fecharem a porta de sua cabine repleta de rosas brancas.
Hoje, ao ir à feira, vi um coração semelhante, contudo, vermelho. Não o trouxe comigo. Ele chorava muito. Havia outros iguais a ele, todos vermelhos e em lágrimas. Assim, acreditei que ali, acompanhado, ele teria mais conforto.
Um coração que chora não deve ficar confinado. Ao ar livre e sob o sol, terá os afagos do tempo que também saberá enxugar e cuidar de suas lágrimas.

Luzia M. Cardoso
12/05/2024
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Dia das Mães



Esse é o primeiro Dia das Mães que eu passo sem mamãe. O primeiro ano que não fico enlouquecida para encontrar o melhor presente para ela. O primeiro Dia das Mães que não almoçaremos juntas.
Escolhi essa foto porque mamãe está com o meu filho no colo na primeira semana de seu nascimento. Essa foto representa a mãe que tive e a mãe que me tornei e é uma forma de eu também homenagear a mãe ancestral.
Os sapatinhos e o gorro vermelhos foram tricotados por mamãe. Ela tricotava muito bem. Lembro quando mamãe realizou um dos tantos projetos meus compartilhados com ela. Pedi que fizesse uma blusa de barbante cru, sem mangas e com duas grandes flores bordadas à mão na frente da blusa. Mamãe fez! Amava aquela blusa. Nela estava a habilidade de mamãe de tricotar e de bordar. Mamãe tricotava e bordava a sua vida e na própria vida.
Outra vez, inventei de ela tricotar um vestido vermelho, tubo, sanfonado, um pouco acima do joelho. Mamãe fez! E as tantas blusas em ponto rendado que ela teceu para mim e para as minhas irmãs.
Pontos rendados refresca e alegram o verão e a primavera. Os pontos fechados aquecem o inverno, protegem do frio...
Eu e mamãe erámos parceiras no tricô. Não, eu não sei tricotar, nem mesmo sei segurar as agulhas. Na vida, eu rabisco, pinto e borro...
Acontece que mesmo sendo completamente sem habilidades para pegar e manusear as agulhas de tricô, eu e mamãe tínhamos uma grande cumplicidade em seus projetos. Mamãe gostava de comprar revistas com receitas de peças em tricô. Sabendo disso, eu também as comprava para ela. Só que a confecção das peças das revistas exigem além da habilidade com as agulhas. Exigem decifrar os códigos, paciência para com as letras miúdas, retorno às páginas, interpretação das receitas. E era aí que eu entrava. Ao lado de mamãe, eu mergulhava nas receitas das revistas.
Eu ficava imensamente feliz quando via a peça pronta. Cada peça tricotada nessa parceria aquecia o meu coração, inclusive as tantas peças feitas por encomendas para outras pessoas.
Mamãe era uma peça linda, rara, enorme, contudo, muito frágil.
Mãe, quanta saudade eu tenho de você. Receba, mãe, muitos beijos meus e um abraço apertado, do tamanho da imensidão do Universo.

Luzia M. Cardoso
RJ, 12 de maio de 2024

sábado, 4 de maio de 2024

O AVESSO DA PELE, de Jeferson Tenório - Reflexões - 3

 



O autor abre o livro trazendo em epígrafe o início do diálogo da peça de Shakespeare, Hamlet, com a questão levantada pela personagem Bernardo: 


"Quem está aí?"  

Bernardo, Hamlet


Vejo, aí, também uma das chaves para a compreensão do livro O Avesso da Pele. Completaria a epígrafe com a frase de sequência:

 

"Não, respondei-me vós. Alto, Mostrai quem sois!"

Francisco, Hamlet


E parece ser com essas  perguntas que o autor observa e perscruta os pertences do pai, após a sua morte. E é por meio dos seus pertences que o pai se deixa conhecer.


Logo que vi a epígrafe do livro Hamlet, fiquei pensativa. Hamlet é uma personagem solitária, introspectiva, com uma batalha interna que atravessa toda a peça, com uma questão que ficou muito popular por levantar reflexões sobre a existência humana: "Ser ou não ser?"

Interessante que o trecho que Tenório traz em epígrafe é a fala de um dos vigilantes do palácio, Bernardo e dirigida a outro vigilante, Francisco. Bernardo chega para render Francisco naquela noite, à meia noite.


"Vai dormir, Francisco."

Bernardo, Hamlet


Relendo o último capítulo, dessa vez me chamou a atenção, na última folha desse capítulo, o seguinte trecho:                                                                     

"Porto Alegre era um lugar que você construiu fora de si. Você nunca esteve dentro dela. E agora caminho por essas mesmas ruas, tenho Ogum em minhas mãos, e ainda me sinto perdido, mas a palavra continua não sendo essa. Vou em frente, na direção do Guaíba. Tenho Ogum em minhas mãos porque agora é a minha vez." (Grifos meus)                                                                                                                                                       

Aí, nessa frase que grifei, senti que o autor confirmou o que senti ao ler a epígrafe, a fala retirada do diálogo entre dois vigilantes do castelo de Hamlet, no momento em que um substituiria o outro. Achei o livro ainda mais lindo! 😍


Luzia M. Cardoso

RJ, 04 mai. 2024

#OAvessodaPele #Racismo #Racismoestrutural #Classesocial #Literatura

quarta-feira, 1 de maio de 2024

O AVESSO DA PELE, de Jeferson Tenório - Reflexões - 2




Ainda lendo "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório

Em seu relato, o autor nos traz cenas de vida atravessadas por preconceitos, racismo e tensões inerentes ao encontro de pessoas de extratos sociais diferentes. O trecho abaixo me lembrou uma situação que vivi e que atribuo às diferenças socioeconômicas e culturais entre o meu terapeuta e eu, à época com cerca de vinte e pouquinhos anos.

Sobre a terapia, diz o narrador:

"Eles eram brancos. Vieram de uma classe média. E tinham uma visão limitada do mundo."

Esse trecho disparou em mim uma viagem no tempo quando, lá pelos anos de 1980, eu fazia terapia reichiana. O terapeuta, pelo pouco que soube, vinha de extratos sociais altos. De descendência europeia, era branco, de cerca de trinta e poucos anos, se vestia dentro do conceito que ficou conhecido como "hippie de boutique". Se dizia de esquerda.

Certo dia, a dinâmica do próprio processo terapêutico, não lembro detalhes, despertou em mim um forte sentimento de revolta e frustração. Lembro com precisão que bombardeei o terapeuta como uma série de questionamentos, inclusive a sua tendência "de esquerda". E ouvi:

- Quem gosta de pobreza é intelectual. Não tenho culpa das minhas origens sociais.

E ainda diante de mim, a cliente que o colocava em cheque e questionava aquela dinâmica que reverberava em mim os tantos nãos que acompanharam a minha vida, seguiu o terapeuta:

- A questão é que você não sabe ouvir não.

Ah, subi pelas tamancas! Explicitei a minha concepção acerca daquela interpretação rasa e pequeno burguesa dos sentimentos em mim despertados pelo processo analítico.

Considerando as diferenças de nossas origens de classe social, para mim, o cara pegara a régua de Freud sem fazer nenhuma contextualização e sem nenhuma mediação.

Meu terapeuta vinha de família de empresários, morava em apartamento próprio em um dos bairros caros da nossa "Cidade para alguns Maravilhosa", cursara psicologia na PUC e adotava um discurso que pregava uma espécie de "sociedade alternativa" a la Raul Seixas. Eu, a sua cliente, nasci e vivi na zona norte, pais semialfabetizados, cinco irmãos, pagava pela terapia o equivalente a um pouco mais de um salário mínimo mensal (e esse preço era considerado valor social), estudante da rede pública, trabalhava quarenta horas semanais, estudava à noite e ainda fazia estágio nos finais de semana. Os meus pais sustentavam os seus seis filhos com a renda advinda do trabalho de papai, em função que diziam ser destinada aos "barnabés", além dos bicos de pedreiro nos finais de semana e da renda do trabalho de minha mãe, que vendia roupas pelas ruas, batendo de porta em porta.

Com tamanho abismo social, econômico e cultural entre nós dois, que tínhamos vivências tão diferentes, o meu terapeuta, apesar de se dizer de esquerda, adotava a mesma régua que Freud utilizou em sua clientela burguesa e pequeno burguesa da Europa do Século XIX e início do Século XX para interpretar os sentimentos e as reações de sua cliente pertencente à massa trabalhadora brasileira.

Muitos anos mais tarde, após alguns atendimentos como assistente social, ao chegar em casa fiz um poema que dialogava também com aquela minha experiência terapêutica, "Fome de Sim", acessível em https://evivendoquesevive.blogspot.com/2010/08/fome-de-sim.html

Essa minha leitura sobre a "fome de sim" se faz presente em diversos outros poemas meus, muitos publicados em livros, revistas literárias e também em meu blog https://evivendoquesevive.blogspot.com


Luzia M. Cardoso
RJ, 01 mai. 2024

#OAvessodaPele #Racismo #Racismoestrutural #Classesocial #Literatura


O AVESSO DA PELE, de Jeferson Tenório - Reflexões 1

 



Cena 1-

"Mas Juliana não parecia incomodada, porque não pensava que se enquadrasse naquele discurso da cunhada, afinal ela estava namorando um homem negro, tinha um compromisso com um homem negro e isso já bastava para que fosse absolvida de qualquer racismo, ela pensava. Luara era dois anos mais nova que você, entretanto sempre pareceu mais madura. Ela nunca teve um namorado branco."

REFLEXÕES:

O racismo ainda atravessa as relações sociais, afetivas, sexuais, familiares, laborais. Esse trecho do livro tem o poder de nos trazer várias cenas que presenciamos ou vivenciamos ao longo de nossa jornada. Lembranças que nos atingem feito chicotadas, estalam como bofetadas, ardem como ferro em brasa.
Quantas vezes não ouvimos pessoas dizerem que não são racistas e justificarem por terem amigos, afetos ou familiares negros? Como se a proximidade a pessoas negras as colocassem imunes ao racismo.

Cena 2 -

"Na verdade, poucos homens brancos olhavam para ela. E, quando percebeu que isso era devido a sua pele retinta, quando notou que os homens brancos não gostavam do cabelo dela, quando entendeu que ela só servia como fetiche sexual, Luara passou a rebater o mundo branco sempre que podia. E você só foi entender de fato a situação de sua irmã quando você conheceu o professor Oliveira."

REFLEXÕES:

Esse trecho me fez relembrar de uma cena que muito me marcou na adolescência, mas que me ajudou a identificar o preconceito e o racismo.
Sem saber muito como se deu a mudança, quando criança, fui sociável e cercada de outras crianças, Ao entrar na pré-adolescência, fui me transformando em menina tímida, com baixa autoestima, cabisbaixa, ombros curvados e sempre com um livro ou um jornal à frente de meu rosto. Eu vivia em sonhos com amores platônicos e não pegava ninguém.
Um dia, já quase saindo da adolescência, influenciada pelas leituras feministas e marxistas, resolvi expor meus sentimentos para um amigo, por muito tempo o meu crush. Surpreso, não por meus sentimentos, já que todo o grupo sabia, mas por minha coragem, ele reagiu, me mandando pela cara um "Não namoro meninas de cabelos enrolados".
Naquele momento, foi como que se ecoassem as vozes e zombarias que tanto ouvi em meu grupo familiar e social. Uns me zoavam dizendo que eu era branca azeda, outros me chamavam de sarará.
Descendente de família de origens eurafricana, com pai preto e mãe branca, nasci de cor de pele nem branca nem preta, com cabelos crespos, nariz largo e lábios grossos. Para uns, eu seria branca, para outros, parda e, talvez, para outros eu possa ser classificada como negra, se considerarmos pretos e pardos.
Quando penso na classificação parda para cor\raça eu fico muito reflexiva... O que é e o que significa ser parda? Parda seria um marcador de cor de pele, de raça\etnia ou seria mais uma figura de linguagem para disfarçar as nossas origens nos extratos sociais que por gerações vem sendo rebaixados socioeconomicamente pela intensa exploração de sua força de trabalho?
Pardos, os "quase brancos quase pretos de tão pobres", conforme Caetano Veloso.

Luzia M. Cardoso
RJ, 30 abr. 2024

#OAvessodaPele #Racismo #RacismoEstrutural #Literatura