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quarta-feira, 1 de maio de 2024

O AVESSO DA PELE, de Jeferson Tenório - Reflexões - 2




Ainda lendo "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório

Em seu relato, o autor nos traz cenas de vida atravessadas por preconceitos, racismo e tensões inerentes ao encontro de pessoas de extratos sociais diferentes. O trecho abaixo me lembrou uma situação que vivi e que atribuo às diferenças socioeconômicas e culturais entre o meu terapeuta e eu, à época com cerca de vinte e pouquinhos anos.

Sobre a terapia, diz o narrador:

"Eles eram brancos. Vieram de uma classe média. E tinham uma visão limitada do mundo."

Esse trecho disparou em mim uma viagem no tempo quando, lá pelos anos de 1980, eu fazia terapia reichiana. O terapeuta, pelo pouco que soube, vinha de extratos sociais altos. De descendência europeia, era branco, de cerca de trinta e poucos anos, se vestia dentro do conceito que ficou conhecido como "hippie de boutique". Se dizia de esquerda.

Certo dia, a dinâmica do próprio processo terapêutico, não lembro detalhes, despertou em mim um forte sentimento de revolta e frustração. Lembro com precisão que bombardeei o terapeuta como uma série de questionamentos, inclusive a sua tendência "de esquerda". E ouvi:

- Quem gosta de pobreza é intelectual. Não tenho culpa das minhas origens sociais.

E ainda diante de mim, a cliente que o colocava em cheque e questionava aquela dinâmica que reverberava em mim os tantos nãos que acompanharam a minha vida, seguiu o terapeuta:

- A questão é que você não sabe ouvir não.

Ah, subi pelas tamancas! Explicitei a minha concepção acerca daquela interpretação rasa e pequeno burguesa dos sentimentos em mim despertados pelo processo analítico.

Considerando as diferenças de nossas origens de classe social, para mim, o cara pegara a régua de Freud sem fazer nenhuma contextualização e sem nenhuma mediação.

Meu terapeuta vinha de família de empresários, morava em apartamento próprio em um dos bairros caros da nossa "Cidade para alguns Maravilhosa", cursara psicologia na PUC e adotava um discurso que pregava uma espécie de "sociedade alternativa" a la Raul Seixas. Eu, a sua cliente, nasci e vivi na zona norte, pais semialfabetizados, cinco irmãos, pagava pela terapia o equivalente a um pouco mais de um salário mínimo mensal (e esse preço era considerado valor social), estudante da rede pública, trabalhava quarenta horas semanais, estudava à noite e ainda fazia estágio nos finais de semana. Os meus pais sustentavam os seus seis filhos com a renda advinda do trabalho de papai, em função que diziam ser destinada aos "barnabés", além dos bicos de pedreiro nos finais de semana e da renda do trabalho de minha mãe, que vendia roupas pelas ruas, batendo de porta em porta.

Com tamanho abismo social, econômico e cultural entre nós dois, que tínhamos vivências tão diferentes, o meu terapeuta, apesar de se dizer de esquerda, adotava a mesma régua que Freud utilizou em sua clientela burguesa e pequeno burguesa da Europa do Século XIX e início do Século XX para interpretar os sentimentos e as reações de sua cliente pertencente à massa trabalhadora brasileira.

Muitos anos mais tarde, após alguns atendimentos como assistente social, ao chegar em casa fiz um poema que dialogava também com aquela minha experiência terapêutica, "Fome de Sim", acessível em https://evivendoquesevive.blogspot.com/2010/08/fome-de-sim.html

Essa minha leitura sobre a "fome de sim" se faz presente em diversos outros poemas meus, muitos publicados em livros, revistas literárias e também em meu blog https://evivendoquesevive.blogspot.com


Luzia M. Cardoso
RJ, 01 mai. 2024

#OAvessodaPele #Racismo #Racismoestrutural #Classesocial #Literatura


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