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sábado, 4 de maio de 2024

O AVESSO DA PELE, de Jeferson Tenório - Reflexões - 3

 



O autor abre o livro trazendo em epígrafe o início do diálogo da peça de Shakespeare, Hamlet, com a questão levantada pela personagem Bernardo: 


"Quem está aí?"  

Bernardo, Hamlet


Vejo, aí, também uma das chaves para a compreensão do livro O Avesso da Pele. Completaria a epígrafe com a frase de sequência:

 

"Não, respondei-me vós. Alto, Mostrai quem sois!"

Francisco, Hamlet


E parece ser com essas  perguntas que o autor observa e perscruta os pertences do pai, após a sua morte. E é por meio dos seus pertences que o pai se deixa conhecer.


Logo que vi a epígrafe do livro Hamlet, fiquei pensativa. Hamlet é uma personagem solitária, introspectiva, com uma batalha interna que atravessa toda a peça, com uma questão que ficou muito popular por levantar reflexões sobre a existência humana: "Ser ou não ser?"

Interessante que o trecho que Tenório traz em epígrafe é a fala de um dos vigilantes do palácio, Bernardo e dirigida a outro vigilante, Francisco. Bernardo chega para render Francisco naquela noite, à meia noite.


"Vai dormir, Francisco."

Bernardo, Hamlet


Relendo o último capítulo, dessa vez me chamou a atenção, na última folha desse capítulo, o seguinte trecho:                                                                     

"Porto Alegre era um lugar que você construiu fora de si. Você nunca esteve dentro dela. E agora caminho por essas mesmas ruas, tenho Ogum em minhas mãos, e ainda me sinto perdido, mas a palavra continua não sendo essa. Vou em frente, na direção do Guaíba. Tenho Ogum em minhas mãos porque agora é a minha vez." (Grifos meus)                                                                                                                                                       

Aí, nessa frase que grifei, senti que o autor confirmou o que senti ao ler a epígrafe, a fala retirada do diálogo entre dois vigilantes do castelo de Hamlet, no momento em que um substituiria o outro. Achei o livro ainda mais lindo! 😍


Luzia M. Cardoso

RJ, 04 mai. 2024

#OAvessodaPele #Racismo #Racismoestrutural #Classesocial #Literatura

quarta-feira, 1 de maio de 2024

O AVESSO DA PELE, de Jeferson Tenório - Reflexões - 2




Ainda lendo "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório

Em seu relato, o autor nos traz cenas de vida atravessadas por preconceitos, racismo e tensões inerentes ao encontro de pessoas de extratos sociais diferentes. O trecho abaixo me lembrou uma situação que vivi e que atribuo às diferenças socioeconômicas e culturais entre o meu terapeuta e eu, à época com cerca de vinte e pouquinhos anos.

Sobre a terapia, diz o narrador:

"Eles eram brancos. Vieram de uma classe média. E tinham uma visão limitada do mundo."

Esse trecho disparou em mim uma viagem no tempo quando, lá pelos anos de 1980, eu fazia terapia reichiana. O terapeuta, pelo pouco que soube, vinha de extratos sociais altos. De descendência europeia, era branco, de cerca de trinta e poucos anos, se vestia dentro do conceito que ficou conhecido como "hippie de boutique". Se dizia de esquerda.

Certo dia, a dinâmica do próprio processo terapêutico, não lembro detalhes, despertou em mim um forte sentimento de revolta e frustração. Lembro com precisão que bombardeei o terapeuta como uma série de questionamentos, inclusive a sua tendência "de esquerda". E ouvi:

- Quem gosta de pobreza é intelectual. Não tenho culpa das minhas origens sociais.

E ainda diante de mim, a cliente que o colocava em cheque e questionava aquela dinâmica que reverberava em mim os tantos nãos que acompanharam a minha vida, seguiu o terapeuta:

- A questão é que você não sabe ouvir não.

Ah, subi pelas tamancas! Explicitei a minha concepção acerca daquela interpretação rasa e pequeno burguesa dos sentimentos em mim despertados pelo processo analítico.

Considerando as diferenças de nossas origens de classe social, para mim, o cara pegara a régua de Freud sem fazer nenhuma contextualização e sem nenhuma mediação.

Meu terapeuta vinha de família de empresários, morava em apartamento próprio em um dos bairros caros da nossa "Cidade para alguns Maravilhosa", cursara psicologia na PUC e adotava um discurso que pregava uma espécie de "sociedade alternativa" a la Raul Seixas. Eu, a sua cliente, nasci e vivi na zona norte, pais semialfabetizados, cinco irmãos, pagava pela terapia o equivalente a um pouco mais de um salário mínimo mensal (e esse preço era considerado valor social), estudante da rede pública, trabalhava quarenta horas semanais, estudava à noite e ainda fazia estágio nos finais de semana. Os meus pais sustentavam os seus seis filhos com a renda advinda do trabalho de papai, em função que diziam ser destinada aos "barnabés", além dos bicos de pedreiro nos finais de semana e da renda do trabalho de minha mãe, que vendia roupas pelas ruas, batendo de porta em porta.

Com tamanho abismo social, econômico e cultural entre nós dois, que tínhamos vivências tão diferentes, o meu terapeuta, apesar de se dizer de esquerda, adotava a mesma régua que Freud utilizou em sua clientela burguesa e pequeno burguesa da Europa do Século XIX e início do Século XX para interpretar os sentimentos e as reações de sua cliente pertencente à massa trabalhadora brasileira.

Muitos anos mais tarde, após alguns atendimentos como assistente social, ao chegar em casa fiz um poema que dialogava também com aquela minha experiência terapêutica, "Fome de Sim", acessível em https://evivendoquesevive.blogspot.com/2010/08/fome-de-sim.html

Essa minha leitura sobre a "fome de sim" se faz presente em diversos outros poemas meus, muitos publicados em livros, revistas literárias e também em meu blog https://evivendoquesevive.blogspot.com


Luzia M. Cardoso
RJ, 01 mai. 2024

#OAvessodaPele #Racismo #Racismoestrutural #Classesocial #Literatura


O AVESSO DA PELE, de Jeferson Tenório - Reflexões 1

 



Cena 1-

"Mas Juliana não parecia incomodada, porque não pensava que se enquadrasse naquele discurso da cunhada, afinal ela estava namorando um homem negro, tinha um compromisso com um homem negro e isso já bastava para que fosse absolvida de qualquer racismo, ela pensava. Luara era dois anos mais nova que você, entretanto sempre pareceu mais madura. Ela nunca teve um namorado branco."

REFLEXÕES:

O racismo ainda atravessa as relações sociais, afetivas, sexuais, familiares, laborais. Esse trecho do livro tem o poder de nos trazer várias cenas que presenciamos ou vivenciamos ao longo de nossa jornada. Lembranças que nos atingem feito chicotadas, estalam como bofetadas, ardem como ferro em brasa.
Quantas vezes não ouvimos pessoas dizerem que não são racistas e justificarem por terem amigos, afetos ou familiares negros? Como se a proximidade a pessoas negras as colocassem imunes ao racismo.

Cena 2 -

"Na verdade, poucos homens brancos olhavam para ela. E, quando percebeu que isso era devido a sua pele retinta, quando notou que os homens brancos não gostavam do cabelo dela, quando entendeu que ela só servia como fetiche sexual, Luara passou a rebater o mundo branco sempre que podia. E você só foi entender de fato a situação de sua irmã quando você conheceu o professor Oliveira."

REFLEXÕES:

Esse trecho me fez relembrar de uma cena que muito me marcou na adolescência, mas que me ajudou a identificar o preconceito e o racismo.
Sem saber muito como se deu a mudança, quando criança, fui sociável e cercada de outras crianças, Ao entrar na pré-adolescência, fui me transformando em menina tímida, com baixa autoestima, cabisbaixa, ombros curvados e sempre com um livro ou um jornal à frente de meu rosto. Eu vivia em sonhos com amores platônicos e não pegava ninguém.
Um dia, já quase saindo da adolescência, influenciada pelas leituras feministas e marxistas, resolvi expor meus sentimentos para um amigo, por muito tempo o meu crush. Surpreso, não por meus sentimentos, já que todo o grupo sabia, mas por minha coragem, ele reagiu, me mandando pela cara um "Não namoro meninas de cabelos enrolados".
Naquele momento, foi como que se ecoassem as vozes e zombarias que tanto ouvi em meu grupo familiar e social. Uns me zoavam dizendo que eu era branca azeda, outros me chamavam de sarará.
Descendente de família de origens eurafricana, com pai preto e mãe branca, nasci de cor de pele nem branca nem preta, com cabelos crespos, nariz largo e lábios grossos. Para uns, eu seria branca, para outros, parda e, talvez, para outros eu possa ser classificada como negra, se considerarmos pretos e pardos.
Quando penso na classificação parda para cor\raça eu fico muito reflexiva... O que é e o que significa ser parda? Parda seria um marcador de cor de pele, de raça\etnia ou seria mais uma figura de linguagem para disfarçar as nossas origens nos extratos sociais que por gerações vem sendo rebaixados socioeconomicamente pela intensa exploração de sua força de trabalho?
Pardos, os "quase brancos quase pretos de tão pobres", conforme Caetano Veloso.

Luzia M. Cardoso
RJ, 30 abr. 2024

#OAvessodaPele #Racismo #RacismoEstrutural #Literatura