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domingo, 7 de agosto de 2011

Respeitar a liberdade de decisão ou internar compulsoriamente? As cracolândias em questão

Respeitar a liberdade de decisão ou internar compulsoriamente? As cracolândias em questão


Segunda-feira, 8:h30min. Saio do estacionamento em direção ao trabalho. No percurso, deparo-me vários corpos atravessados na calçada. Homens, mulheres, de diferentes idades, ali, largados no chão. Corpos sujos, roupas rotas, rostos inchados e inertes. 
Não, não vivo em um país em guerra. Não houve nenhum terremoto ou maremoto por aqui. Não, as pessoas ali largadas não estão mortas. A sensação que dá é que seus corpos viraram fardos de suas próprias almas. E aí, despidas da carne, as almas seguem a viagem alucinante.
Diferentemente de muitas pessoas em situação de rua, os dependentes de crack nem mesmo conseguem pensar em proteger-se, abrigando-se sob uma marquise, ou no canto da calçada, ou no banco de uma praça. Simplesmente, abandonam-se em qualquer lugar.
Encontrar corpos atravessados nas calçadas, em qualquer bairro da capital do Rio de Janeiro, já faz parte da rotina de quem anda pelas ruas. E as pessoas que passam parecem estar no mesmo transe que os dependentes químicos, como se a droga anestesiasse quem a consome e quem assiste os seus nefastos efeitos.
As pessoas no chão parecem ficar invisíveis. Não se nota mais se é adulto, criança ou adolescente. Se é homem ou mulher, se ela está ou não grávida. Parece não haver questionamentos se quem está ali dorme ou está inconsciente.
Teve um dia em que ouvi uma senhora dizer a outra que ao encontrar um adolescente nesta situação, ligou para o Conselho Tutelar, contudo, ela dizia que ao explicar a situação, ouviu da atendente que não deveria ligar lá, e sim para a polícia. 
Será que é caso de polícia as situações em que adolescentes, vencidos pelas drogas, largam-se nas calçadas? 
Naquele momento, ouvindo as senhoras conversando, lembrei-me do que soube acerca do entendimento de alguns abrigos sobre o direito de ir e vir de crianças e adolescentes, levando-os a não impedirem crianças e adolescentes abrigados de irem para as ruas, embora desacompanhados. 
Tenho a impressão de estar no avesso do avesso, como Caetano na Avenida São João. Acredito que se crianças e adolescentes estão em fase de desenvolvimento físico, mental, emocional e cognitivo, e por isso não respondem pelos próprios atos, sua liberdade deve ser supervisionada por seus responsáveis ou por um adulto por estes designado. Será que comprendo errado?
Estamos diante de compreensões? Então, convivemos com o entendimento de que adolescentes largados nas ruas, provavelmente sob o efeito de drogas, é caso de polícia, como convivemos com pessoas que acreditam que adolescentes e crianças abrigados têm o direito de saírem às ruas sem supervisão. 
Serão essas diferentes compreensões que definem a execução das políticas sociais? E o que fazer diante da epidemia que toma conta das periferias? Sim, das periferias, embora eu tenha a clareza que a droga extrapola fronteiras sociais, contudo, o que vemos nas periferias é em número assombroso. Há casos que em uma mesma família o crack está presente no cotidiano de jovens pais de crianças. A adicção, nesses casos, parece ser intergeracional e intrafamiliar.

Não tenho a menor dúvida de que temos que intervir nessa situação. Também não tenho a menor dúvida de que não devemos deixar ao relento, largados nas ruas, as vítimas do crack, de qualquer outra droga, ou por qualquer motivo. Atendimento no local, recolhimento, abrigamento, alimentação, roupas e assistência profissional devem ser ofertados, insistentemente, aos envolvidos. Digo, ofertar serviços insistentemente, não digo internação compulsória dos dependentes, apesar de saber que essa proposta vem sendo defendida por muitas pessoas e já executada na cidade do Rio de Janeiro. Entendo, no entanto, que todo e qualquer cidadão, quando nas ruas, largado no chão, deve ser conduzido a um abrigo, contudo, quando adultos, respeitando a sua liberdade e autonomia.
E com relação às crianças e adolescente? Ah, vejo que voltamos à questão já abordada aqui: o direito de ir e vir dessa parcela da população. Na minha opinião, esse direito implica também no dever dos responsáveis de garantir-lhes supervisão, pondo-os a salvo de situações de perigo e constrangimentos, intervindo em situações de risco, e estabelecendo o limite, sempre que necessário. 
Todavia, para que os responsáveis de crianças e adolescentes cumpram com as obrigações inerentes ao poder familiar, eles precisam de estabilidade, não só emocional, mas econômica e social. E aí temos uma outra questão. As condições de vida de muitas famílias residentes em periferias são desumana.s Muitos barracos sem reboco, com chão de cimento grosso, paredes úmidas, e sem um janela sequer. É inacreditável!!! Em muitas unidades residenciais a ventilação ocorre apenas por meio da porta de entrada. Algumas têm menos de quatro metros quadrados de área total. As ruelas são super-estreitas, há esgoto aberto, lixo largado em qualquer lugar. Em algumas comunidades, por serem verticais, o sol não chega às portas, os olhos não alcançam ao céu, e o horizonte... Ah, aí não há nenhum horizonte.
Penso que a epidemia do crack é sim uma questão de saúde e, por isso, a política de combate às drogas deve estabelecer programas nos três níveis de assistência: primário, secundário e terciário. Além das unidades de internação e tratamento para os dependentes químicos, a situação necessita de ações preventivas. 
Há, no entanto, que resgatar a definição de saúde presente em nossa Carta Constitucional e na Lei Orgânica de Saúde. Assim, tirar a cidadania do papel e materializá-la na realidade das periferias garantindo a todos o direito à moradia digna, à alimentação, ao trabalho protegido, devolvendo-lhes o ar, o sol, o céu e o sonho, torna-se indispensável para que todos os pais tenham condições de cuidar de seus filhos e poder mostrar-lhes o brilho e as cores do horizonte.

Luzia M. Cardoso