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terça-feira, 19 de outubro de 2021

O Melhor Lar para o que te Resta de Vida

 


O Melhor Lar para o que te Resta de Vida


    Chegar à terceira idade não é qualquer coisa, assim como não é a mesma coisa ser um idoso com 60, 70, 80, 90 e 100 anos em nosso país. E, talvez, em país algum. Não, não é qualquer coisa e nem a mesma coisa. Em um país onde já morreram mais de 600 mil pessoas, num país onde dentre essas mortes, mais de 74% foram idosos, os que vemos pelas ruas deste nosso imenso e desigual Brasil são os guerreiros. Guerreiros, sim, pois o Brasil não é um país para pouca luta. É um país para muita luta! E quando a expectativa média de vida é de cerca de 76 anos de idade, passar disso não é para muitos, não.
    E o idoso, a idosa, que chegou aos 90 anos, então? Se for um idoso, uma idosa das camadas sociais classificadas como E, D e C, nossa, trata-se de um herói, de uma heroína que merece estátua em praça pública e dignos de que lhe seja ofertado um dia de feriado nacional! Já pararam para pensar que para chegar a mais de 90 anos a pessoa venceu o estrago que o esgotamento do trabalho destinado a pessoas com pouca instrução, e por mais de 40 anos, causou em seu corpo, em sua mente, em suas emoções?
    E se fizermos os cálculos, um idoso que tenha hoje 90 anos ou mais nasceu no século passado, para lá de 1931. Voltemos à história de nosso país para vermos quantas batalhas esses idosos, essas idosas venceram: a tuberculose no Brasil matava muita gente até meados do século XX; a varíola matou muitos até os anos 70; a gripe por H1N1, considerada a primeira epidemia do século XXI também levou muitas vidas e, agora, o Coronavírus. Vemos, então, que além da miséria e do esgotamento do trabalho, o idoso, a idosa com 90 anos ou mais passou por todas essas doenças. Passou por elas e as venceu! Esse idoso, essa idosa ainda passou pela escassez e pelo pavor que plainavam sobre o planeta durante toda a Segunda Grande Guerra e durante os tempos da Guerra Fria.
    Hoje, já para lá dos 70, 80, 90, principalmente quando alguma doença lhe retira a independência para as atividades diárias, esse idoso, essa idosa terá que lutar com o destino que lhes desenha a sua família. Sim, evidentemente que haverá aqueles de suas famílias que projetarão o futuro desse herói, dessa heroína em uma instituição para idosos. E os que pensam em instituição de idosos para o pai, para a mãe, avô, avó, bisavô, bisavó, tentarão convencer os contrários e farão propaganda das instituições de idosos para que pareçam um SPA, uma colônia de férias para o restante dos dias de vida. E dirão, tal qual o Diabo disse para Cristo ao conduzir-lhe a um monte muito alto, prometendo-lhe tudo o que os seus olhos alcançarem: o idoso, a idosa terá um quarto individual, mas se tu preferires, poderás deixar que divida o quarto com outros e, aí, ele, ela poderá ser divertir muito mais. E ainda, ele, ela terá seis refeições diárias; acompanhamento médico semanal, com assistência de equipe de enfermagem 24 horas! Olha que beleza! E terá lazer, divertimentos todos os dias e, ainda, fisioterapeuta para atividade física orientada à idade e às condições físicas! Veja só, teu paizinho, tua mãezinha, teu avozinho, tua avozinha viverá o resto dos dias de suas vidas em um verdadeiro paraíso!
    O melhor de tudo, nesse paraíso aqui sobre a Terra, tu poderás visitar o teu velhinho amado, a tua velhinha amada quando quiseres (evidentemente, dentro do horário estipulado pela instituição. Mas isso é de praxe, não é?) Ah, mas quando desejares, é só combinar na administração e tu poderás ainda levar o teu idoso, a tua idosa para passear, ou para confraternizar com os familiares em tua casa!
    É a maravilha das maravilhas e tu não terás mais que te preocupares com hora de medicação, segurança no sono, hora do banho etc. etc. etc. Não encontrarás nem mesmo no Reino de Deus um lar melhor para o teu amado velhinho, para a tua tão querida velhinha.
    Após o Diabo defender a excelência de uma instituição para idosos e, seduzidos por tantos prós, vamos esquecer todos os contras. Vamos esquecer que o idoso, a idosa para quem tratamos o tão curto futuro que lhe resta, viveu por mais de 30, 40, 50 anos na residência onde se encontra. Vamos deixar para lá o fato de que nesse local, o idoso, a idosa teceu redes de afeto, de solidariedade, de companheirismo que se fazem presentes hoje, no dia a dia, a cada vez que ele, que ela chega ao portão, à calçada, que dá uma volta no local. Vamos ensurdecer ao que dizem ao idoso, à idosa, as paredes, os retratos, os móveis e cada canto da residência onde mora. Vamos fechar os olhos para o quanto essa rede de afeto e essas lembranças vivas se constituíram, e se constituem, em verdadeiro elixir da vida e que foi isso que conduziu o idoso, a idosa até a idade que chega hoje.
    Para quê memórias, para que a rede de afeto, para que o direito de receber quem quiser e a hora que quiser em sua residência, se esse idoso, se essa idosa poderá TER TUDO O QUE A SUA RENDA PUDER PAGAR dentro de um lar para idosos?

    Então, agora, olhe nos olhos do teu amado idoso, de tua tão amantíssima velhinha, esse velhinho, essa velhinha que pode ser o teu bisavô, a tua bisavó, ou o teu avô, a tua avó, ou mesmo o teu pai, a tua mãe. Olhe fundo nos olhos dele, olhe fundo nos olhos dela. Olhe no fundo, bem lá no fundo de seus olhos e me diga: qual é o melhor lar para a tua mãe, para o teu pai, para o teu avô, para a tua avó, para o teu bisavô, para a tua bisavó passar o restante dos dias de sua vida?
    E se você pode pagar um lar de idoso e garantir toda essa purpurina que a propaganda acena, o que te falta para garantir a melhor assistência ao teu idoso, à tua idosa, dentro da residência onde ela, onde ele viveu e que sempre forneceu o elixir que garantiu a ele, a ela, a longevidade?

Luzia Magalhães Cardoso
(Desenho de Couto Anibal)


A Justa Medida

 

A Justa Medida


    Filhos têm responsabilidades para com os seus pais? E se houver irmãos, irmãs, todos teriam a mesma responsabilidade? Haverá instrumento de aferição para se medir o que cada filha, cada filho precisa fazer por seu pai, por sua mãe? Qual seria a medida dos cuidados, dos deveres, da assistência a ser ofertada por cada um, por cada uma? Qual seria o critério da medida justa? 🤔

  
    Haverá equidade na assistência a ser dada pelos filhos, pelas filhas ao pai, à mãe? Haverá meio para se garantir que cada um faça a mesma parte, a mesma quantidade, a mesma medida que o outro? Ou será que o tamanho da assistência ofertada por cada filho, por cada filha aos seus pais é proporcional ao tamanho do afeto, do amor, da solidariedade e da compaixão que têm ao se depararem com as necessidades do pai, da mãe? 🤔

    Será que é humano perceber a necessidade do pai, da mãe, e não supri-la? Será que é digno ficar medindo o valor da assistência material necessária a ser ofertada aos pais? Será que é da condição do ser humano deixar toda a assistência presencial, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo, apenas com uma pessoa? 🤔

    Não haveria uma grande dose de egoísmo em não participar do dia a dia dos cuidados dos pais? Não teria uma grande dose de sadismo quando ausente das tarefas diárias do cuidado, ainda se acha no direito de ditar regras, delegar novas tarefas, fazer críticas e cobranças e querer regular os gastos daquele que cuida diretamente do pai, da mãe? 🤔

    Quanto valeram aquelas tantas e tantas, e tantas, noites que a mãe, que o pai ficaram sem dormir velando o nosso sono, buscando meios de garantir as condições necessárias à nossa vida, saúde, educação, preocupados quando estávamos no trajeto de algum lugar para casa?

    Em que canto de nossa memória ficou aquela labuta diária de nosso pai, de nossa mãe, nas tarefas do lar, nas atividades para garantir o nosso pão de cada dia, no imenso sacrifício para nos propiciar o brinquedo de Natal, aquele sonhado vestido de princesa e a nossa festa de quinze anos, aquele anel de formatura?

   Onde estão as nossas lembranças da quantidade de solicitações de ajuda, de todo tipo que, já adultos, pedimos aos nossos pais? E, muitas vezes, nem morávamos na mesma cidade deles, mas nem a distância os impediram de ir aonde nós estávamos para nos ajudar. Em que local roto deixamos apagar as imagens dos cuidados de nossa mãe, de nosso pai aos nossos próprios filhos?

    E quando chega o tempo em que o pai, a mãe passa a necessitar de cuidados diários, passa a demandar por amparo para se locomover, quando passa a necessitar que o alimento seja levado à sua boca em cada hora da alimentação, e que o banho lhe seja dado, o que caberia a cada um dos filhos, das filhas?

Luzia M. Cardoso