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quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Pelas Calçadas...




       São muitas as coisas que encontramos pelas calçadas, e que podemos observar, principalmente quando fazemos percursos a pé. Algumas nos levam a sorrir, nostálgicos, como a marca do triângulo para as disputas de bola-de-gude, os quadrados que nos levam ao “Céu” e ao “Inferno”, dos jogos de amarelinha. Ah, o barbante do pião, rabiolas coloridas de pipas... Brincadeiras de crianças...

       Também encontramos canteiros, com pequenos jardins e árvores colorindo nosso caminho com folhas e flores de matizes diversas. E viajamos pela doce primavera; relembramos o calor mais intenso daquele verão; a brisa calma do outono, e as cinzentas nuvens do inverno. E tudo isso na calçada.

        Ah, mas não há somente poesia, não. Ainda encontramos papéis, chicletes, palitos de churrascos (de gato?), churrasqueiras, bancas de frutas, outras tantas de cacarecos dos mais diversos.
       A calçada, pavimento, passeio público, lugar de pedestre, mas que vem sendo invadida por carros que nela insistem estacionar, quebrando as pedras, o cimento, esbarrando nos canteiros, empurrando pessoas, carrinhos de bebês e idosos para a rua. E por causa dessa invasão, e inversão, assistimos à multiplicação de gelos baianos (não sei por que atribuíram a naturalidade baiana aos blocos de concretos. Poderiam ser cariocas, ou gaúchos, ou...).
       Mas de tudo o que já vi pela calçada, o que mais tem chamado a minha atenção são os corpos estirados sobre o cimento duro, cinza, sujo. Sim, corpos, corpos e mais corpos. Corpos de crianças de cerca de nove, onze anos, de adolescentes, de jovens homens e mulheres. Corpos largados, abandonados e atravessados na calçada. Parecendo anestesiados ao frio, ao sol.
         Vejo pessoas, que passam perto desses corpos, sem os notarem, como se fossem invisíveis, como já acontece com os corpos de etilistas, que desfalecem ao torpor do álcool; ou dos mendigos que, fatigados, lançam-se no chão para descansarem de uma noite de vigília.
       Parece, no entanto, haver alguma diferença entre os etilistas e mendigos e os corpos com que tenho me deparado nas calçadas. Os primeiros procuram um banco de praça, uma marquise, uma soleira para deitarem, para caírem. De certa forma, buscam alguma proteção, mesmo que ilusória.
     Os corpos que vejo pelo chão parece terem sido abandonados por seus proprietários, seus donos de fato e de direito: a própria pessoa. É como se a alma, ou o espírito tivesse abandonado o corpo à própria sorte, como um peso, largado no caminho.
           E assim, assistimos ao que pode ser o momento mais triste e degradante das nuvens do crack, dessa nova epidemia que atinge a população: pelas calçadas, há corpos estendidos no chão.

Luzia M. Cardoso


Crônica selecionada para publicação no CBJE, 2011.