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sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O Lixo Nosso de Cada Dia



Assistimos, indignados, às notícias da cidade de Duque de Caxias submersa em lixo. O lixo nosso de cada dia. O lixo exposto nas ruas, amontoados nas calçadas e não coletados pela prefeitura. O lixo que se espalha, que fede, que atrai ratos, mosquitos, baratas, entre outros. O lixo ao fogo e que, ao vento, também queima o rosto de uma criança. O lixo de Duque de Caxias.
Mas a questão do lixo não se restringe à cidade de Duque de Caxias, pois em várias ruas do país tropeçamos em sacos de lixo. Aquilo que dispensamos e que, por não suportarmos guardar em casa, depositamos do lado de fora, alguns em latões, outros em sacos, mas do lado de fora. Muitas vezes sem nos importarmos com a data e o horário da coleta.
Nosso lixo de todo dia. E juntamos latas, papeis, cascas, restos de comidas, vidros, isopor, garrafas, roupas velhas, brinquedos, pilhas etc., etc. Tudo junto num mesmo saco plástico, tantas vezes mal fechados.
            Mas esse nosso lixo também é fonte de renda para a subsistência de tanta gente. Gente que garimpa de sol a sol, a pé, carregando nos ombros tudo o que nem sequer conseguimos organizar seletivamente para jogar fora. E por nossa desorganização, os trabalhadores de coleta seletiva acabam rasgando os frágeis sacos que largamos do lado de fora de nossas casas, contribuindo para espalhar ao vento, nas ruas, os nossos cheiros, os nossos restos, os nossos trapos, as nossas mazelas.
E nós nem enxergamos esses trabalhadores. Como se a fuligem os tornasse invisíveis. Tampouco percebemos que o seu trabalho é de utilidade pública. Todos os coletadores de materiais recicláveis somente são notados quando cruzam o nosso caminho com os sacos nas costas, ou quando puxam um burro sem rabo disputando as ruas com os carros de passeio, com os taxis, vans e ônibus, ou quando desmaiam de fadiga e fome nas calçadas, em meio ao lixo que descartamos.
E tudo poderia ser tão mais simples se as autoridades dessem a infraestrutura para o trabalho dos coletadores de materiais recicláveis, cadastrando todos, fornecendo-lhes uma bicicleta cargueira, equipamentos de segurança como luvas, uniforme, tênis, boné. Seria tão mais evoluído se nós, cidadãos, organizássemos nosso lixo seletivamente, identificando os sacos com o tipo de material, se conhecêssemos os trabalhadores que vivem da coleta e se entregássemos aos mesmos o nosso lixo seletivamente ensacado.
Infelizmente, a importância que damos ao nosso próprio umbigo nos impede de fazermos assim, por isso, juntamos o que descartamos de qualquer forma e nos livramos de tudo, na primeira esquina, na primeira calçada, na primeira rua.


Luzia M. Cardoso
RJ, 28 de dezembro de 2012

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Reflexões acerca da Supervisão a Estagiários de Serviço Social



Dentre as atribuições privativas do Assistente Social, trago aqui a reflexão sobre a nossa responsabilidade no “Treinamento, avaliação e supervisão direta de estagiários de Serviço Social (Lei 8.662, de 07 de junho de 1993, Art. 5º, item VI”).

Há muito, o CFESS e os CRESS vêm se preocupando com o processo de formação de novos profissionais, e para tanto, têm deliberado, direcionado e orientado a prática profissional acerca dessa atribuição. Cinco anos depois de sancionada a Lei acima citada, o CFESS, respondendo à solicitação do CRESS 9ª Região, elaborou o Parecer Jurídico 12\98, de 17 de março de 1998, tendo em vista as múltiplas interpretações acerca do conceito “supervisão direta”, presente na Lei 8.662 (Op. Cit.).

Relacionando essa Lei, ao artigo 4º da Resolução CFESS n° 273/93, de 13 de março de
1993, estabelece que

“O acompanhamento direto do aluno estagiário será efetivado pelo assistente social dos quadros da instituição onde se realize o estágio, cabendo a este delegar funções ao estagiário como forma de treinamento e aprendizagem. Quando da delegação de função ao estagiário deverá acompanhar minuciosamente a adequada aplicação dos métodos e técnicas do Serviço Social, transmitindo seus conhecimentos sobre a prática profissional.” (CFESS Parecer Jurídico 12\98, de 17 de março de 1998).

Esse Parecer Jurídico deu o direcionamento à Resolução CFESS nº 533, de 29 de setembro de 2008, que regulamenta a “Supervisão Direta de Estágio em Serviço Social”. Ambos os documentos apontam as funções dos principais atores desse processo de treinamento dos novos profissionais em Serviço Social: supervisor acadêmico (professor da unidade de ensino) e supervisor direto ou de campo (assistente social da unidade concedente).

Observa-se que já a Lei de 1993 preocupou-se em especificar a supervisão de estagiários em Serviço Social com o termo “direta”, ou seja, uma relação de supervisão entre o Assistente Social e o estagiário, sem intermediários nem desvios.

A fim de dirimir dúvidas, a Resolução CFESS nº 533\2008 além de delimitar o número máximo de estagiários por assistente social\supervisor (um estagiário para cada dez horas de trabalho), incorporou outro termo para especificar, e qualificar, a “supervisão direta" aos estagiários de Serviço Social: “sistemática”, ou seja, que ocorre a partir de um método coerente e ordenado”. Tal Resolução, em seu Artigo 5º, também deixa bastante claro que a “supervisão direta” deverá ser presencial, “na mesma instituição e no mesmo local onde o estagiário executa suas atividades de aprendizado, acompanhando seu acompanhamento sistemático, contínuo e permanente, de forma a orientá-lo adequadamente.”

Os textos regulamentadores do Estágio em Serviço Social não deixam margens para interpretações diferenciadas, como a compreensão de que desde que dentro da mesma instituição, o estagiário poderá estar em um prédio atendendo aos usuários e o Assistente Social\Supervisor, em outro. Os textos não abrem para essa possibilidade, visto que cabe ao segundo “o acompanhamento sistemático, contínuo e permanente” para orientar o primeiro, e esse dever fica impossibilitado se ambos não estiverem no mesmo local no momento de execução da tarefa. (Grifos meus)

Evidentemente que algumas atividades, por sua natureza, possibilitam ao Assistente Social supervisor oportunizar a autonomia relativa do estagiário, como exemplo podemos citar os levantamentos estatísticos, a observação do campo, entre outras, desde que devidamente orientados. Todavia, devido à dinamicidade inerente à relação interpessoal e à complexidade da avaliação dos determinantes das refrações da questão social, no atendimento aos usuários não há a possibilidade de deixar o estagiário sozinho, pois falta ao aluno a totalidade de conhecimentos que garante a formação profissional. Nesse sentido, o aluno ainda não tem o arcabouço teórico, metodológico e político necessários para a avaliação e intervenção nas necessidades sociais demandadas pelos sujeitos usuários das instituições executoras das políticas sociais, demandando, por isso, da supervisão direta, sistemática e presencial do Assistente Social Supervisor.

Pela mesma razão, da mesma forma que o aluno não pode se responsabilizar ou se corresponabilizar pelo atendimento aos usuários, não poderá, ele mesmo, fazer registros em prontuários ou assinar, nem mesmo com o seu supervisor, os relatórios, laudos e pareceres sociais. As informações nesses documentos são de responsabilidade exclusiva do profissional, garantindo aos usuários, à equipe interprofissional e a quem necessitar das mesmas, a segurança e a competência teórico-metodológica que subsidiaram os registros.

Concluindo, o estágio profissional, tanto na modalidade curricular com extracurricular, tem como objetivo a formação de novos profissionais, necessitando de planejamento, organização e acompanhamento das intuições envolvidas (a de ensino e a concedente), sendo imprescindível a elaboração, por parte do supervisor, de um projeto de supervisão, com objetivos, metodologia, bibliografia e detalhamento das atividades, cuja complexidade deverá ser compatível com a fase do processo de aprendizagem do estagiário, pois a prática profissional do Serviço Social é de competência exclusiva aos possuidores do diploma de bacharel em Serviço Social (expedido por curso de nível superior oficialmente reconhecido), e com registro no Conselho Regional de Serviço Social.


Por Luzia M. Cardoso

Assistente Social e Professora do Curso de Serviço Social, Supervisora Acadêmica na Disciplina
Estágio em Serviço Social .

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

As Relvas de Outrora



Sete horas e já estou nas ruas tensas dos subúrbios carioca. É a rotina. Acordo com o toque do celular, às risadas programadas por meu filho. Café rápido e retorno ao quarto: “- Vamos, filho, levanta.” E o cachorro aos pés, insistindo em se fazer notar com estranhos presentes que vai deixando em meu caminho. Tenho que recolhê-los, não tem jeito. “- Filho, levanta!” E sigo para o banho, roupas, conferência do material de aula. “- Filho, levanta!” E vem arrastado, molenga, joga o cabelo para um lado, joga para o outro, vai e volta ao espelho, como se pactuasse com o relógio. Ledo engano. Os ponteiros disparam.  Ah, adolescência!

Retornando, passo em frente ao Parque Ary Barroso e, de repente, sinto-me arrastada pela força das gritarias de crianças que correm, saltam e brincam nas gramas, aos impulsos dos frenéticos vaivéns dos balanços. E deslizo nas rampas dos escorregas, ouvindo os sussurros românticos dos jovens à sombra das frondosas árvores... E vi-me lá na minha diversão favorita, na parte mais alta do Parque para descer rolando pela grama. Uma delícia... A relva úmida de orvalho que, generosa, ofertava um doce perfume, o vento espalhando os sonhos que meus olhos desenhavam no céu, ao comando da trilha sonora dos pássaros...

Sinto um gosto de saudades enquanto guio o carro pela rua do Parque e percebo que elas correm nas grades que hoje fecham aquele cinzento parque, agora ocupado pelas paredes frias da UPA e da Base dos Militares da Força de Pacificação. Portão trancado para o Parque, árvores com a copa em palha revelando o longo inverno, brinquedos fantasmas vagueiam pelo tempo, gramas sentidas por não mais poderem usufruir das gritarias infantis e dos romances juvenis... E pendurado nas grades, um cartaz indicando a programação da Arena Carioca.

O Parque Ary Barroso era uma das poucas áreas de lazer da região. Tinha uma cascata, lago, árvores diversas, situado nas malhas de saída para a Avenida Brasil, perto da linha Férrea da Leopoldina e do Hospital Getúlio Vargas. Mas não resistiu ao abandono e com o crescimento das comunidades periféricas, tornou-se acesso aos morros do Complexo do Alemão, utilizado também como rota de fuga de bandidos e isso afastou de lá as crianças e os adolescentes da região. Agora, sedia a base das Forças de Pacificação a partir de 2010 e a UPA 24h, descaracterizando o local. E o que era para ser um bosque, um espaço de lazer, idealizado nos anos 60, com área de 50 mil metros quadrados, mantém-se ocupado por equipamentos da administração pública para a execução da política de segurança e da agonizante política de saúde brasileira.

E as crianças e os adolescentes que moram nos arredores assistem arrancar-lhes a esperança, com noites aterrorizadas pelos gritos agonizantes de seus sonhos, dilacerados sob a caneta impiedosa dos nossos governantes.

Luzia M. Cardoso
Rio de Janeiro, 24 de agosto de 2012

sábado, 18 de agosto de 2012

A "Escolha de Sofia"


Luzia M. Cardoso


Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias  entorpecentes. (LEI Nº 8.069, Estatuto da Criança e do Adolescnte, de 13 de julho de 1990.   Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária – Disposições Gerais)


São muitas as interpretações do artigo 19 do ECA que vem sendo dadas pelos profissionais que trabalham com crianças e adolescentes, seja no campo da execução das políticas de Assistência Social, da Saúde e da Educação, principalmente na atualidade quando há uma preocupação da sociedade e dos governantes com relação à ferida exposta da dependência de substâncias psicoativas: o crack.
O crack entrelaça-se a tantas outras expressões da exploração capitalista, quando consumido por aquele segmento mais vulnerabilizado da sociedade que se expõe à situação de rua, seja em atividades no mercado subterrâneo ou  devido à violência intrafamiliar.  Nas ruas, esse grupo fica exposto à fome, ao tempo, à violência urbana, à indiferença e a droga é consumida como forma de fugir dessa cruel realidade.
E nas ruas encontramos crianças, jovens, adultos e idosos de ambos os sexos, embora não signifique que todos os agrupamentos em situação de rua sejam consumidores de crack, mas possivelmente, todos tenham contato direta ou indiretamente com ele, ou com outras substâncias psicoativas, como o álcool, o cigarro, a cola, entre outras.
Expostos ao cotidiano da rua, com os laços familiares fragilizados ou rompidos, sem perspectivas de vida, há que buscar meios de aguentar essa realidade e sobreviver,  assim, muitos recorrem às drogas.
E nas ruas perambulam, esmolam, furtam, agridem, brigam, dormem, fazem sexo e as mulheres, adolescentes ou adultas, engravidam. Algumas, dos parceiros do dia a dia, outras, por fazerem do corpo mercadoria para pagarem aquela outra que lhes promete condições de poder resistir a tanta privação. Quando engravidam, com o ventre crescendo, o fruto deste passa a ser cobiçado, correndo também o risco de virar mais uma mercadoria de troca nesse mercado subterrâneo.
No momento do parto, sem muita opção, o nascimento de um novo ser poderá ocorrer ali nas ruas, e as mães serão levadas para alguma maternidade pública. Caso o parto não ocorra nas ruas, a mulher, por ação própria, ou por assistência de terceiros, será conduzida à maternidade para o nascimento do bebê.
Uma gestação sem assistência pré-natal, sob o sol e o frio do asfalto. Nesses casos, provavelmente, a não assistência à gestação ocorreu devido à desorganização que as drogas acarretam no indivíduo, levando a certa desorientação no tempo e no espaço, quando em ação.
E quando essa mulher interna-se na maternidade pública ou filantrópica, os profissionais de saúde vêm-se diante de uma situação que parece desafiar-lhes a ética e por em cheque seu arcabouço teórico-metodológico. O que fazer? De um lado um bebê-recém-nascido no processo de privação. Do outro, uma mulher que sobrevive ao mesmo. Uma família privada de direitos.
Nessa hora, constatam-se as mazelas de uma sociedade injusta, que se alimenta da ilusão de que o trabalho dignifica o homem, mas que mantém milhares de trabalhadores com salários que não lhes possibilitam o acesso, com dignidade, à moradia, alimentação, educação, transporte, assistência médico-hospitalar, previdenciária, entre tantos outros direitos sociais. A realidade que forja a situação de vulnerabilidade e risco será constatada nas instituições de execução das nossas frágeis políticas sociais.
E o que fazer com essa mãe e com seu bebê recém-nascido frente ao consumo de drogas, à exposição aos riscos da rua, ao rompimento dos laços familiares e à iniquidade e segmentação das políticas sociais?
Não é raro que os profissionais de saúde percebam-se diante de uma espécie de "escolha de Sofia" e busquem a decisão do poder judiciário. Mas ao poder judiciário cabe julgar situações de litígios, de infrações, de crimes. E se cabem ao pais assegurar à sua prole condições para que tenha um pleno desenvolvimento “físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”, conforme o artigo 3º da Lei supracitada, essa mesma Lei, no artigo 23º, também afirma que “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão poder familiar”, assim, a falta de condições presentes não ocorre nem por culpa nem por dolo dos mesmos.
 Mas sem vínculos com a família extensa, com o pai ausente, desconhecido, ou em situação de rua e consumidor de substâncias psicoativas, como a genitora, muitas vezes a decisão judicial é pelo abrigamento da criança, ou por sua colocação em família substituta. Nesses casos, supõe-se a possibilidade de um dia a genitora, ou os pais, venham a ter condições de garantir os direitos de seus filhos. Talvez, decida-se ainda pela internação compulsória da genitora em clínicas de tratamento de dependentes químicos, contudo, sem a garantia de que ao sair ela terá oportunidades diferentes daquelas com as quais se deparou até aquele momento.
Percebe-se que, nos casos de recém-nascidos, a tendência é afirmar que a realidade de seus pais levará à violação do direito dos mesmos e, assim, ao decidir-se pelo abrigamento da criança, ou por sua colocação em família substituta, suspende-se o poder familiar, judicializando a pobreza e vitimizando ainda mais aquela mãe que não consegue ver sequer um fino raio de luz no final daquele túnel. 
A tendência é a suposição de que, devido à mãe encontrar-se em situação de rua e ser consumidora de substância psicoativa, essa realidade levará às situações que o artigo 1638 do novo Código Civil aponta para a perda do poder familiar, que são: castigar imoderamente o filho; deixá-lo em abandono; praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; incidir no abuso da autoridade ou na falta dos deveres familiares e é por essa hipótese que considera-se que a criança encontra-se em situação de risco.
É a “escolha de Sofia”: - Resguardar os direitos da criança ou os de sua mãe (e de seu pai, se tiver)? 
Independentemente das estratégias dos profissionais de tentarem construir, ou reconstruir, a rede de proteção desses cidadãos a partir ou não do Tribunal de Justiça, as ações e avaliações no interior das unidades de saúde devem ser realizadas imprescindivelmente por profissionais formados e qualificados, nunca por estagiários sem a presença física de seus supervisores, embora os estudantes devam participar do processo enquanto momento de sua formação.
Caberá aos profissionais a analise das demandas apresentadas por esse segmento da população, a fim de buscar as alternativas. Para tanto há que se identificar os determinantes históricos daquela realidade, tanto as presentes em cada situação, quanto as coletivas; há que se avaliar a relação do usuário com a droga (se consumidor eventual, dependente etc), bem como se o consumo da droga produziu danos em sua saúde, relações familiares, sociais e vida laboral; há que se apresentar a responsabilidade do Estado e da sociedade para apontar a função dos equipamentos do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e dos outros níveis de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como a responsabilidade dos governantes em equipá-los para assistência integral, universal e equânime. E assim, buscar a construção de caminhos que resguardem os direitos de todos os envolvidos.   
Para tanto, há que se fortalecer o trabalho em equipe interdisciplinar, e entender que a rede de proteção se conforma em trabalho interinstitucional. Há que reivindicar a formação continuada e ultrapassar a concepção biológica de saúde, do assistencialismo e da atenção emergencial, trabalhando com o paradigma da saúde como resultado das condições materiais de vida e urgência na garantia de direitos, tanto para a criança quanto para a genitora e sua família.

sábado, 23 de junho de 2012

Declaração Final da Cúpula dos Povos na Rio +20

Declaração final

Cúpula dos Povos na Rio+20 por Justiça Social e Ambiental
Em defesa dos bens comuns, contra a mercantilização da vida

Movimentos sociais e populares, sindicatos, povos, organizações da sociedade civil e ambientalistas de todo o mundo presentes na Cúpula dos Povos na Rio+20 por Justiça Social e Ambiental, vivenciaram nos acampamentos, nas mobilizações massivas, nos debates, a construção das convergências e alternativas, conscientes de que somos sujeitos de uma outra relação entre humanos e humanas e entre a humanidade e a natureza, assumindo o desafio urgente de frear a nova fase de recomposição do capitalismo e de construir, através de nossas lutas, novos paradigmas de sociedade.

A Cúpula dos Povos é o momento simbólico de um novo ciclo na trajetória de lutas globais que produz novas convergências entre movimentos de mulheres, indígenas, negros, juventudes, agricultores/as familiares e camponeses, trabalhadores/as, povos e comunidades tradicionais, quilombolas, lutadores pelo direito a cidade, e religiões de todo o mundo. As assembleias, mobilizações e a grande Marcha dos Povos foram os momentos de expressão máxima destas convergências.

As instituições financeiras multilaterais, as coalizações a serviço do sistema financeiro, como o G8/G20, a captura corporativa da ONU e a maioria dos governos demonstraram irresponsabilidade com o futuro da humanidade e do planeta e promoveram os interesses das corporações na conferencia oficial. Em contraste a isso, a vitalidade e a força das mobilizações e dos debates na Cúpula dos Povos fortaleceram a nossa convicção de que só o povo organizado e mobilizado pode libertar o mundo do controle das corporações e do capital financeiro.

Há vinte anos o Fórum Global, também realizado no Aterro do Flamengo, denunciou os riscos que a humanidade e a natureza corriam com a privatização e o neoliberalismo. Hoje afirmamos que, além de confirmar nossa análise, ocorreram retrocessos significativos em relação aos direitos humanos já reconhecidos. A Rio+20 repete o falido roteiro de falsas soluções defendidas pelos mesmos atores que provocaram a crise global. À medida que essa crise se aprofunda, mais as corporações avançam contra os direitos dos povos, a democracia e a natureza, sequestrando os bens comuns da humanidade para salvar o sistema econômico-financeiro.

As múltiplas vozes e forças que convergem em torno da Cúpula dos Povos denunciam a verdadeira causa estrutural da crise global: o sistema capitalista patriarcal, racista e homofóbico.

As corporações transnacionais continuam cometendo seus crimes com a sistemática violação dos direitos dos povos e da natureza com total impunidade. Da mesma forma, avançam seus interesses através da militarização, da criminalização dos modos de vida dos povos e dos movimentos sociais promovendo a desterritorialização no campo e na cidade.

Da mesma forma denunciamos a divida ambiental histórica que afeta majoritariamente os povos oprimidos do mundo, e que deve ser assumida pelos países altamente industrializados, que ao fim e ao cabo, foram os que provocaram as múltiplas crises que vivemos hoje.

O capitalismo também leva à perda do controle social, democrático e comunitário sobre os recursos naturais e serviços estratégicos, que continuam sendo privatizados, convertendo direitos em mercadorias e limitando o acesso dos povos aos bens e serviços necessários à sobrevivência.

A dita “economia verde” é uma das expressões da atual fase financeira do capitalismo que também se utiliza de velhos e novos mecanismos, tais como o aprofundamento do endividamento publico-privado, o super-estímulo ao consumo, a apropriação e concentração das novas tecnologias, os mercados de carbono e biodiversidade, a grilagem e estrangeirização de terras e as parcerias público-privadas, entre outros.

As alternativas estão em nossos povos, nossa historia, nossos costumes, conhecimentos, práticas e sistemas produtivos, que devemos manter, revalorizar e ganhar escala como projeto contra-hegemônico e transformador.

A defesa dos espaços públicos nas cidades, com gestão democrática e participação popular, a economia cooperativa e solidaria, a soberania alimentar, um novo paradigma de produção, distribuição e consumo, a mudança da matriz energética, são exemplos de alternativas reais frente ao atual sistema agro-urbano-industrial.

A defesa dos bens comuns passa pela garantia de uma série de direitos humanos e da natureza, pela solidariedade e respeito às cosmovisões e crenças dos diferentes povos, como, por exemplo, a defesa do “Bem Viver” como forma de existir em harmonia com a natureza, o que pressupõe uma transição justa a ser construída com os trabalhadores/as e povos.

Exigimos uma transição justa que supõe a ampliação do conceito de trabalho, o reconhecimento do trabalho das mulheres e um equilíbrio entre a produção e reprodução, para que esta não seja uma atribuição exclusiva das mulheres. Passa ainda pela liberdade de organização e o direito a contratação coletiva, assim como pelo estabelecimento de uma ampla rede de seguridade e proteção social, entendida como um direito humano, bem como de políticas públicas que garantam formas de trabalho decentes.

Afirmamos o feminismo como instrumento da construção da igualdade, a autonomia das mulheres sobre seus corpos e sexualidade e o direito a uma vida livre de violência. Da mesma forma reafirmamos a urgência da distribuição de riqueza e da renda, do combate ao racismo e ao etnocídio, da garantia do direito a terra e território, do direito à cidade, ao meio ambiente e à água, à educação, a cultura, a liberdade de expressão e democratização dos meios de comunicação.

O fortalecimento de diversas economias locais e dos direitos territoriais garantem a construção comunitária de economias mais vibrantes. Estas economias locais proporcionam meios de vida sustentáveis locais, a solidariedade comunitária, componentes vitais da resiliência dos ecossistemas. A diversidade da natureza e sua diversidade cultural associada é fundamento para um novo paradigma de sociedade.

Os povos querem determinar para que e para quem se destinam os bens comuns e energéticos, além de assumir o controle popular e democrático de sua produção. Um novo modelo enérgico está baseado em energias renováveis descentralizadas e que garanta energia para a população e não para as corporações.

A transformação social exige convergências de ações, articulações e agendas a partir das resistências e alternativas contra hegemônicas ao sistema capitalista que estão em curso em todos os cantos do planeta. Os processos sociais acumulados pelas organizações e movimentos sociais que convergiram na Cúpula dos Povos apontaram para os seguintes eixos de luta:

Contra a militarização dos Estados e territórios;
Contra a criminalização das organizações e movimentos sociais;
Contra a violência contra as mulheres;
Contra a violência as lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgeneros;
Contra as grandes corporações;
Contra a imposição do pagamento de dívidas econômicas injustas e por auditorias populares das mesmas;
Pela garantia do direito dos povos à terra e território urbano e rural;
Pela consulta e consentimento livre, prévio e informado, baseado nos princípios da boa fé e do efeito vinculante, conforme a Convenção 169 da OIT;
Pela soberania alimentar e alimentos sadios, contra agrotóxicos e transgênicos;
Pela garantia e conquista de direitos;
Pela solidariedade aos povos e países, principalmente os ameaçados por golpes militares ou institucionais, como está ocorrendo agora no Paraguai;
Pela soberania dos povos no controle dos bens comuns, contra as tentativas de mercantilização;
Pela mudança da matriz e modelo energético vigente;
Pela democratização dos meios de comunicação;
Pelo reconhecimento da dívida histórica social e ecológica;
Pela construção do DIA MUNDIAL DE GREVE GERAL.
Voltemos aos nossos territórios, regiões e países animados para construirmos as convergências necessárias para seguirmos em luta, resistindo e avançando contra os sistema capitalista e suas velhas e renovadas formas de reprodução.

Em pé continuamos em luta!

Rio de Janeiro, 15 a 22 de junho de 2012.
Cúpula dos Povos por Justiça Social e ambiental em defesa dos bens comuns, contra a mercantilização da vida.

sábado, 16 de junho de 2012

Rio de Janeiro de quantos?





Óculos da estátua de Drummond = R$ 3.000,00 X 8 = R$ 24.000,00
Estimativa da Rio +20 para os cofres públicos = Mais de R$ 100.000.000,00
Orçamento da reforma do Maracanã = R$ 808.004.000,00
Obras para a Copa e as Olimpíadas + $$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$$

E a Saúde e a Educação...


Fonte de consulta:


Portal da Copa. Site do Governo Federal: http://www.copa2014.gov.br/pt-br/noticia/obra-de-reforma-do-maracana-chega-56

Veja Rio de 21 de maio de 2012: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/rio-20-deve-custar-mais-de-r-100-mi-aos-cofres-publicos

Jornal do Brasil\ Rio de 2011: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2009/12/28/drummond-de-oculos-novos/

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Linha Saracuruna. Estação Bonsucesso: Do público ao privado, a concessão





As linhas que separam o público do privado ficam invisíveis quando o segundo adquire a concessão de administrar o primeiro. Propriedade privada e patrimônio público, o que pertence a um e o que pertence a todos. Essa é uma grande questão.

Hoje, um pouco antes de iniciar o meu trabalho, fui conhecer a estação do teleférico do Morro do Alemão, em Bonsucesso, Rio de Janeiro. Entraria no trabalho as 8:00h e cheguei as 7:20h. Tinha tempo. Não para atravessar os 3,5 Km integrados pelos cabos do teleférico do Complexo do Alemão, mas somente para conhecer a estação de Bonsucesso.

Não tive dúvidas e dirigi-me para lá. Desci a Av. Paris, atravessei a Rua Leopoldo Bulhões, para subir à escada que é comum tanto para a estação ferroviária, da Linha Saracuruna, quanto para o recém-criado teleférico.







Não consegui subir de imediato. A hora era do rush e uma massa humana descia aqueles degraus. Precisei deixar a corrente abrandar. Em menos de cinco minutos já conseguia subir na contramão da correnteza. Ao entrar tive uma boa surpresa com a limpeza, boa manutenção e iluminação, escadas rolantes e elevadores para o patamar seguinte, que dá acesso ao teleférico. Verifiquei que o bilhete para o teleférico custava R$ 1,00.  

Resolvi caminhar pelo andar de acesso à estação ferroviária e deparei-me com três painéis lindíssimos, feitos na parede, em mosaicos coloridos. Um indicando o nome da estação “Bonsucesso”, com desenhos retratando as pessoas na comunidade.




Outro com a legenda “Todos Juntos” com desenhos de pessoas de várias cores, tamanhos, adultos, crianças, cadeirantes e que juntos formam o desenho de um morro.



O terceiro era uma baiana estilizada, lembrando a Carmem Miranda e era o único que estava assinado por Romero Brito. 



Todos os painéis em cores intensas. Havia também um belo quadro com desenho estilizado dos caminhos dos cabos do bondinho subindo para outra estação do Complexo Alemão. 



Segundo as pesquisas que fiz na Internet, os painéis foram feitos com a participação dos moradores.

As paredes externas em vidro permitem a vista para a Praça das Nações, de um lado, e do outro, para a via férrea, com o movimento do teleférico ao alto. Uma bela vista.



Feliz da vida, e com um imenso prazer com tudo o que via, peguei o meu celular e comecei a fotografar. Em seguida, dirigi-me à bilheteria, desejando comprar um bilhete para o patamar do teleférico, embora não tivesse tempo para atravessar o Complexo do Alemão, estava disposta a pagar a tarifa apenas para conhecer o andar de cima.

Ah, mas nem tudo que reluz é ouro!! Ao dirigir-me ao caixa, a funcionária, embora de forma muito educada, no estilo funcionário padrão que busca a ascensão funcional na empresa, questionou-me se eu tinha autorização para fotografar. Disse-lhe, surpresa, que “não”. Em tom delicado, mas firme, prontamente disse: “Não pode fotografar sem autorização. Isso aqui é propriedade privada.” E devolveu-me o dinheiro, em vez de me dar o bilhete para subir ao andar de acesso ao teleférico.

Sem graça, constrangida e bastante confusa, sai da estação e fui para a empresa onde trabalho aguardar o horário do início de minha jornada.

Enquanto esperava, comecei a lembrar que a malha ferroviária do estado do Rio de Janeiro data do século XIX, e que passou por várias mudanças, com fechamento de ramais, sob administração federal, e depois para  a estadual, com mudanças de razões sociais das empresas que obtinham a concessão de administrá-la:  Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB), do início da República até os anos 50; Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) até os anos 80; Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) até os anos 90; Companhia Fluminense de Trens Urbanos (FLUMITRENS), privatizada em 1998, leiloada e adquirida pela SupeVia, atual administradora de toda a malha ferroviária do estado do Rio de Janeiro, inclusive do teleférico do Complexo do Alemão, que se integrou à malha desde a sua inauguração, em julho de 2011.

Ah, mas se as empresas administradoras da malha ferroviária alegam que investem em manutenção, reformam equipamentos, contratam recursos humanos etc, elas logo restituem o seu capital com o valor das tarifas cobradas aos passageiros. Afinal, trata-se de um negócio e é, portanto, altamente lucrativo. Por outro lado, a malha ferroviária do estado do Rio de Janeiro também se ergueu com recursos públicos ao longo de toda a história. Recursos esses cujas principais fontes são os impostos pagos por todos nós, a população brasileira. Somente para elaboração do projeto do Complexo do Alemão, segundo a Rocinha.org, o governo do estado do Rio de Janeiro pagou R$ 12 milhões. O teleférico do Complexo do Alemão, classificado como "obra pública", pelo vice-governador do estado, em entrevista ao jornal Estadão de 07 de julho de 2011, foi construído com recursos públicos, inclusive do Projeto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Segundo a BBC Brasil, também de 07 de julho de 2011, saíram dos cofres públicos R$ 210 milhões, sem contar com os custos da operação de ocupação e implantação das Unidades de Polícias Pacificadoras (UPP’s), imprescindíveis para garantir os interesses das concessionárias.

E aí eu me pergunto: Por que o cidadão brasileiro tem que pedir autorização para fotografar um bem público? Será que os turistas também são impedidos de fotografar? Ou será que seu bilhete já vem com uma autorização?  E com tanto investimento de recursos públicos, como que funcionários da SuperVia podem dizer, e acreditar, que o prédio da estação ferroviária ou qualquer das estações do teleférico do Complexo do Alemão é uma propriedade privada? Então, se a SuperVia quiser ela poderá fechar as portas, derrubar cada pilar das estações, vender as dormentes dos trilhos? Enrolar os cabos dos teleféricos e levar embora cada gôndola? Será que pode?

Afinal, uma empresa ao adquirir a concessão para administrar um patrimônio público passa a ser proprietária do mesmo?

E como não me pediram para apagar as fotos, entendo que podiam ser feitas.


Luzia M. Cardoso



Fontes de consulta

Emop\ Governo do Estado do Rio de Janeiro: http://www.emop.rj.gov.br/noticia_dinamica1.asp?id_noticia=325








segunda-feira, 4 de junho de 2012

Sacerdócio, profissão ou trabalho?



Na minha infância era comum os adultos perguntar-nos: “O que você vai ser quando crescer”?  Ah, nossos olhos brilhavam quando pensávamos naqueles profissionais que admirávamos. Dizíamos, então: “Eu vou ser professora.” “Eu quero ser médica.” Poder ensinar e curar parecia ser muito lindo. Diziam que se tratava de sacerdócio, pois médicos e professores teriam o dom de curar e ensinar.
Na literatura brasileira essa questão do futuro das crianças por meio da carreira também aparece retratando que, nas famílias mais tradicionais, um deveria ser padre e o outro médico ou advogado. Os mais desapegados às questões materiais escolhiam a medicina, buscando aliviar as dores do corpo e da alma. Os mais materialistas acabavam optando pelo curso de direito. Diferentemente da classe social a que pertence a maioria dos médicos da atualidade, no Século XIX até meados do Século XX eles pertenciam à elite brasileira.
Ah, nossa elite! Tão gananciosa. Desde o passado querendo alcançar o status e o ouro das elites europeias e norte-americanas: viagens, luxo e poder.  Mas embora com riqueza inferior à almejada, as famílias daqueles jovens podiam oferecer-lhe conforto e concretizar os sonhos vendidos no mercado.
No passado, a sociedade respeitava muito os médicos, reconhecendo a sua abnegação e seriedade. Para a população mais pobre era Deus no céu e o médico na Terra. Algumas pessoas até os achavam distantes e frios. "Elitistas", diriam outras. Sim, pode ser, mas eram considerados eficientes, muito competentes e comprometidos com as questões que envolviam a doença.  Eram médicos generalistas e por isso tratavam da doença em qualquer parte do corpo. Atendiam a família, e assim, tinham o histórico das doenças familiares. Apesar de naquela época haver pouca tecnologia na área de diagnósticos, pela história das doenças familiares os médicos já faziam prevenção.
E não me lembro de personagem médico da literatura brasileira que pensasse em enriquecer com a medicina. Evidentemente que, à época que falo, os médicos atendiam às classes que podiam pagá-los, e não cobravam pouco. Mas havia também aqueles que trabalhavam nos raros hospitais públicos, beneficentes e Santas Casas e esses, talvez por estarem garantidos pela herança da família, não pareciam querer fazer da profissão a ponte para enriquecer. Evidentemente que os salários pagos aos médicos que atendiam nessas instituições eram muito superiores ao que se paga atualmente
Mas tudo muda. Como dizia Marx, “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”.  E a sociedade mudou. E a medicina também mudou.  Ocorreram muitos avanços na área da medicina diagnóstica e farmacêutica. Os médicos generalistas, os Clínicos Gerais, foram perdendo status para os especialistas. E a sociedade passou a valorizar mais os Cardiologista, Endocrinologista, Nefrologista, Neurocirurgião, Oncologista etc. E as piadas entre os próprios médicos começavam a surgir, de forma a reforçar a estratificação criada pela sociedade das indústrias. Lembro-me a seguinte piada que ouvi de um médico, quando cursava a faculdade: “Sabe qual é a diferença entre o ortopedista e o obstetra? É que o ortopedista precisa usar a força”. 
E com os avanços tecnológicos e farmacêuticos, surgiram também os grandes laboratórios e começava a ficar impraticável o exercício autônomo da medicina. O diagnóstico passava a exigir exames diversos cujo valor poucas pessoas poderiam pagar. Assim, vários médicos se filiaram à medicina de grupo e buscaram o trabalho assalariado nos grandes hospitais e clínicas. Começava a decadência do poder aquisitivo e do status dessa categoria profissional, visto que, pela lei do mercado, o valor do salário do trabalhador é calculado em proporção inversa ao número de trabalhadores capacitados para o trabalho, bem como ao valor que se dá ao que se produz.  E agora o médico é também um trabalhador assalariado.
Hoje, apesar das reivindicações por aumento salarial, condições de trabalho etc. ainda é o setor público quem mais emprega os profissionais de saúde, incluindo os médicos. E nas instituições públicas, contrariando o preconizado pelos idealizadores do Sistema único de Saúde, SUS, o atendimento destina-se às classes-que-vivem-do-trabalho, utilizando-me aqui do conceito criado por Ricardo Antunes, no livro “Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho”.
A sociedade de consumo não dá valor às dores do corpo e da alma da população, a não ser para vender medicamentos e planos de saúde. O chamado “povão” só é lembrado no momento de atraí-lo para a compra de bugigangas, para financiamentos e para votos nas eleições. Depois?  Ah, depois o povo é esquecido.
Nessa lógica, quando é que, sem pressão popular, o governo e os empresários da saúde vão pagar melhor os profissionais de saúde, entre eles os médicos que atendem o povão? Já respondo: “Nunca!”
Apesar disso, na atualidade, parece que os jovens estudantes universitários levam um choque ao ingressarem no mercado de trabalho, principalmente  aqueles que escolheram o curso de medicina e imaginaram-se especialistas conceituados, sonhando em conseguir a ascensão social por meio da profissão.
Sim, ascensão social, pois no Brasil do Século XXI a classe social de origem de muitos médicos é outra, quando comparada as do início do Século XX. Provavelmente, a grande maioria não tem herança para resguardá-los e vivem do que conseguem com a venda de sua força de trabalho.
Ah, que choque!  A realidade vira uma tortura: baixos salários, falta de equipamentos, emergências lotadas, pessoas com doenças graves e sem possibilidade de cura, doenças decorrentes da falta de comida, dieta pobre, exploração e acidente de trabalho, da falta de saneamento básico etc., etc. E isso não se trata apenas com medicamentos e máquinas sofisticadas para cirurgias e transplantes. Não, isso se trata com melhor distribuição de renda e socialização dos meios de produção.
E o médico perde o status social e o poder.
E aí o que vemos na atualidade? Profissionais de saúde com várias jornadas de trabalho, sacrificando o horário que deveriam dar nas instituições públicas. Essa situação concorre para a falta de profissionais no atendimento à população. Vemos ainda profissionais frustrados, descontentes, trabalhando contrariado, o que leva ao atendimento negligente e, consequentemente, ao diagnóstico e tratamento equivocado.  É o que as notícias dos jornais têm revelado.
E a solução?  Ah, certamente os profissionais de que falo acham que a solução está no aumento do salário e na equipação das unidades de saúde. Será? 
Possivelmente, no futuro próximo, caso se implante o ponto eletrônico nas instituições públicas e se por acaso a presidente Dilma mantiver a proposta de equiparar o valor da hora de trabalho dos médicos aos dos demais profissionais de saúde de nível superior, a tendência talvez seja de evasão dos médicos do serviço público em direção ao serviço privado, na ilusão de serem lá mais valorizados.
Fico cá a pensar com os meus botões: “Quanto tempo será que vai durar essa estratégia na lógica do capital?”


Luzia M. Cardoso