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sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Cotinha



Cotinha


            Dia de feira. Duas meninas, de quatro e seis anos de idade, acompanhavam a sua mãe nas compras daquela rua do bairro de Madureira. Legumes, verduras, frutas, flores, peixes e uma explosão de cores e aromas.

            Sacola ao ombro e a pechincha imprescindível para esticar as notas e as moedas que se escondiam no interior da bolsa e que, por obra do ato, permitiam saborearem, as três, o caldo de cana com pastel de queijo. 

         Duas pirralhinhas a se divertirem no meio da feira, saboreando a prova da melancia, do abacaxi, da laranja, da tangerina... "É necessário confirmar se estão doces", dizia a mãe. 

        De mãos dadas, uma de cada lado, não percebiam que aquela diversão era a extensão dobrada do labor daquela mulher que segurava os ponteiros do relógio para garantir a arrumação da casa, as compras na feira, o almoço do dia, os cuidados daquelas crianças, o acompanhamento até a escola e a venda de roupas de porta em porta. 

        Ir à feira era uma festa! 

- Mamãe, mamãe, olha os pintinhos! Olha os pintinhos! Compra, compra! 

    Eram pintinhos amarelinhos, pretinhos, pintadinhos. Todos pequeninos, lindos e que piavam, piavam, piavam. 

         E lá iam as duas fedelhas de mãos dadas com a mãe, cada uma segurando o seu pintinho dentro do saquinho de papel pardo todo furadinho. 

       Se a mãe comprava os pintinhos, comprava também a ração para alimentá-los: farelo de milho ou uma mistura própria para eles. 

        Em casa, os pintinhos não resistiam a tanto chamego. Era colo, era levá-los para as coleguinhas verem, era também incluí-los nas brincadeiras da infância e que os pobres dos pintinhos acabavam por não resistirem. Choro e mais choro, até a feira da semana seguinte. 

        Até que um dia, um bravo pintinho, parecendo ter nascido para aquelas novidades, resistiu ao dia a dia daquelas crianças. A cada volta da escola, as duas entravam em casa como o vento e chamavam: Cotinha, Cotinha, Cotinha! 

    Se era um pintinho ou uma pintinha, ninguém sabia, mas lhe deram o nome de Cotinha.

       E lá vinha o pintinho pulando e abrindo as asas para poder bicar o sapato das meninas e, em seguida, os seus pés descalços. 

O tempo voava naquelas brincadeiras e presenteava Cotinha: deu-lhe uma crista; e enquanto a penugem amarelinha ia sendo largada nos saltos das brincadeiras, ele a presenteava com penas na cor marrom. 

- Cotinha, Cotinha, Cotinha! 

    E já vinha a ave a correr, asas abertas, para bicar os sapatos e os pés descalços das gurias. Cotinha bicava com força e vontade e, de tal intensidade, que deixava marcas arroxeadas nos peitos dos pés das crianças. 

    Mas na vida de um pintinho que se transforma em frango há um domingo e, nos domingos daquela família, se comia macarrão, feijão, farofa de ovo, maionese com batatas e galinha ou frango, assado ou ao molho pardo. 

    Havia sempre um domingo entre as semanas e haveria um domingo no tempo de Cotinha. E esse domingo, um dia, chegou. 

        Naquela família, era o pai quem abatia os frangos e as galinhas do almoço de domingo. Àquela época, frangos e galinhas eram comprados vivos e abatidos em casa. 

      Naquela família, cuidava-se para que as crianças não assistissem a cena do abate, mas crianças são curiosas e sempre encontram alguma fresta para espiarem. 

    E o pai segurava as asas, acomodava a ave dentro de uma bacia de metal, segurava firme o seu pescoço, torcia-o... Com a ave já desfalecida, apoiava a sua cabeça em uma pedra de amolar facas e zap! Cabeça para um lado, corpo para o outro e sangue a jorrar. 

    Com Cotinha em casa, essas práticas dos domingos viravam o pesadelo das meninas e, com certeza, também de Cotinha. 

    Um dia, chegou o domingo de Cotinha. Na cozinha, os pais confabulavam. Cotinha e as crianças pressentiam e se escondiam. Mas aquele era o domingo de Cotinha, destino de um pintinho que teimou em virar frango. Era o domingo da missão de um pai de família que via naquele frango a oportunidade de não pendurar o almoço de domingo no armazém da esquina da rua. 

Foi muito choro. 

- Tira as crianças daqui! 

    Foi assim que Cotinha partiu. Durante a sua preparação para o almoço de domingo, ainda no momento de separar os seus órgãos e as partes de seu corpo, fora encontrado, dentro de seu estomago, o seu próprio coração. 

- O coração está no papo?!

    Ouviram as meninas. 

    À mesa, Cotinha depenada e adornada com molho pardo, temperada com a tristeza e as lágrimas das duas meninas. E a tristeza foi tanta, foi tamanha, foi imensa e se expandiu de forma que se entranhou em cada membro daquela família que se sentava ao seu redor da mesa. 

    Aquela mesa posta para o almoço de domingo se transformara em funeral, o funeral de Cotinha, a franguinha que, de tanta tristeza,  engolira o seu próprio coração. 


Luzia M. Cardoso