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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Contando em tranças





Contando em Tranças






Luzia M. Cardoso


Um sonho... Um momento... Um tempo... Um tempo que ficou para trás. Hoje, são páginas viradas, amarelas, dobradas, largadas... Não mais as vi, nunca mais as li. Mas se fecho os olhos, busco profundo, bem lá no fundo, logo eu as vejo, e as releio. Linha a linha, revendo, relendo, lembrando de tudo o que tinha. Estão todas lá, naquele lugar, e é só folhear.

Capa brilhante, dançante. Desenhos multicor, radiantes. Meus olhos ávidos seguem loucos para olhar. Penetram em contos, cantos, recantos, tantos encantos. Encanto-me! Com atenção, é plena a identificação, e só há uma razão: é muita emoção.

Caio no lago. No lago da vida. Vida do cisne feioso, perdido, manhoso... Que foi logo adotado, adotado por patos.
- Cisne criado por patos!
Poderiam ser marrecos, naquela lição. Lá, havia uma lição, uma lição de amor, e mostrava a dor, ambos moldados, as vezes soldados no chumbo...
- Ah, o Soldadinho de Chumbo!
Era diferente, moldado sem perna, ficava parado, ali parado, paralisado, e apaixonado.
- Pela bailarina menina.
A bailarina, pequena dançarina, rodopia, roda, roda, gira, gira e roda, mas apenas roda.
- Que sina!
Soldadinho e bailarina, ambos parados, moldados, amarrados nas manhas da solidão, entram em nuvens de paixão.
- Queima coração! Que aflição!
Um coração partido vira coração bandido, coração de chumbo... Coração de vidro, frio, não pulsa.
- Não, não pulsa, não.
Só bate e rebate. Rebate e bate. Bate e rebate. Não sente que sente. Não sente que sente que dói sua dor.
- Não, não dói sua dor.
Sua de dor. Suado na dor.
- Suado, sofrido, sente também a dor.
Não sente que dói, e sua de dor.
Frio, prendeu a poesia, por tantos dias: Na gaiola, o pássaro caçado... Foi parar lá, maltratado; No aquário de águas turvas, esquecido, deixou o peixinho dourado... Também mal cuidado.
- Coitados!
Trancados em paredes cinzas, insalubres...
- Não resistem!
Mas insistem, persistem... Insistem e persistem... Insistem, persistem, ... E desistem...
- Desistem.
O pássaro ferido e o peixinho largado partiram, passaram... Ambos jogados no ralo, na cova rasa do quintal, escombro outonal, que mofa nas sombras escuras da velha casa, agora assombrada.
- Havia uma árvore naquele lugar.
Vejo lá uma árvore. Uma árvore plantada por pequeninas mãos. Germinada nos sonhos e sorrisos tão frescos. Desde então, cresceram juntos, a árvore e o dono das mãos.
- Tornaram-se grandes e fortes...
Veias e sulcos. Pulsos que pulsam, pulsam os pulsos, pulsos, impulsos, pulsam, impulsos, pulsam, pulsam. Sangue e seiva pulsam, formam, dando forma à grossa casca.
- A casca é grossa para as tempestades.
Também para as secas e ventanias...


Até que um dia, sem ter motivos, a mão pegou a serra elétrica para tocar...
- Sem ter motivos, ela foi tocar.
Tocou as cordas do velho tronco, desafinando também as notas.
- Noto, insistente, as notas tortas.
A serra seca, serrando toca, tocando serra. Toca e serra, toca e serra, toca seca. Seca serra, serra, serra, e já há serra naquela terra que tudo encerra.
O sol esquenta fervendo a água, escalda o sangue, derrama a seiva...
- Em ebulição.
A serra segue, serrando o tronco, tocando a corda com seus acordes...
- Estridentes, persistentes...
Persistente, a mão não sente.
- Não, não sente, não.
A mão na serra, serra na mão. Na mão a força, a pulsação. Pulsando manda, manda e desmanda no coração. 
Serra e toca, toca e serra, cordas e tronco, fio a fio, serra e desfia com a própria mão.
- Destronca o tronco...
A serra forte já serra os olhos, e cega o homem com o pó do tronco. Suando,  serra, segura e serra com a serra elétrica. E sua elétrico, quebrando as frágeis cordas com um puxão.
- Partiu o tronco...

Partiu o tronco. Caiu com a copa, quebrando ovos, fazendo inverno em tantos ninhos do jatobá. Copa e tronco, ninhos e ovos, e os galhos secos do jatobá... Todos no chão... Tristes, mortos, todos lá, calados, machucados, caídos no chão. Foi tudo em vão.


- Roda pião, faz calo no pé, pedindo atenção.
E jorra a seiva, orvalha e jorra a seiva rubra. Brilha vermelha, na terra inteira.
- A terra avermelha, molhando o barro.
O barro pulsa, a seiva pulsa, tudo é vermelho, pulsando a dor. E a dor lancinante  expulsa a seiva,  que pulsante brota, expulsando a dor.
- Pulsando expulsa também a dor.
Pulsa e escorre. Pulsa e encolhe. Pulsa e expande. Expande e encolhe. Pulsa e escorre, escorre e expande... Pulsando forma um ribeirão.  Escorre  e expande, pulsando breve, faz-se afluente do velho riacho. 
Molha o sanhaço, pintando a arara, aos reclames do uirapuru, que emocionado, à cabeceira do ribeirão, recolhe, no canto, um canto tão fino, um canto menino, lançado e esquecido nas primeiras primaveras.
E em revoada, a passarada, atordoada, forma uma roda. Voando em roda, gira a roda... Dá meia volta, e volta e meia, a roda gira inteira. Roda a roda.
- A passarada dá muitas voltas...
Dá muitas voltas a passarada, e as nuvens passam em toda a estrada...


- Roda a roda, e a roda gira, segue e gira, mudando tudo, movendo o mundo, e todos giram. Renova o ar.
A noite cai num pranto escuro, ao som da mata, que lamenta quem mata. E a água rola a pedra solta, descendo enrola também as outras. A água rola, descendo as pedras, por entre fendas e grutas escuras.
- É a cachoeira!


E a água segue, rolando, desce, cai em cascata.
- E gira a roda...
A água menina, de saia rodada, espuma a renda, e sobe o toco do velho tronco do jatobá. Estufa o leito, escolhe as notas, entoa o hino, e num solo triste canta o adeus.



Luzia M. Cardoso
Conto, foto e edição
RJ, 28 de dezembro de 2010 


Referência aos contos de Hans Christian Andersen e José Mauro de Vasconcelos, (Coração de Vidro), ambos citados de memória.


Efeito em glitter: http://www.scrapee.net 


  Conto selecionado para publicação pela CBJE, "Contos de Aurtroes Contemporâneos, 2011.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Simpatia no Réveillon

Simpatia no Réveillon

Rosas rubras no ar, amarelo para brilhar, brancas espumas nas ondas do luar. E... um, dois...sete... muitos beijos apaixonados! Feliz 2011!


Luzia M. Cardoso

sábado, 11 de dezembro de 2010

domingo, 7 de novembro de 2010

Um exemplo de presente

Um exemplo de presente


Ploft, ploft! Crianças jogando ovos no aniversariante? Quando um adulto mostrou a inadequação do ato, o pai manifestou-se, apontando o centro do pátio. O filho tornou-se o alvo da festa.


Luzia M. Cardoso

sábado, 21 de agosto de 2010

Super Herói Brasileiro (Por Emmanuelle Cristina da S. de Oliveira)


Super Herói Brasileiro 
(Por Emmanuelle Cristina da S. de Oliveira)


Super Mouse é mais um herói brasileiro, como eu e como você, que não foge das lutas cotidianas para conquistar o seu lugar ao sol, que na sobrevivência humana pode representar um tudo ou nada.
Nosso super herói têm 54 anos, é carioca, nascido em Juscelino, bairro de um município da baixada fluminense. Com esforço, conseguiu estudar até a 4ª série do primeiro grau. Em 1974, contando com 19 anos de idade ingressou em seu primeiro emprego. Sentia-se orgulhoso pelo trabalho como ajudante de caminhão num deposito de madeira. Nesse local ficou somente dois meses , devido ao Alistamento Militar, o dever de servir à pátria o chamava.
Ah, Quem dera que a Pátria tivesse essa mesma prontidão para com os jovens brasileiros.
Foram dez meses de atividades e apresentação uniformizada à nação. Terminado o tempo, não se manteve como militar, como a maioria dos jovens brasileiros, ele também não foi aproveitado. Super Mouse precisou se vestir novamente de civil e procura novo trabalho para o seu sustento.
Conseguiu outro emprego, agora como Auxiliar de Revelação de Fotos. Não sabia, mas poderia se considerar um cidadão de direitos, pois sua carteira era assinada, com direitos trabalhistas e previdenciários (e também não seria detido por vagabundagem caso tivesse diante de alguma blitz policial).
Nessa atividade permaneceu por dois anos e quatro meses. Já no inicio da década de 80, também como um cidadão de direito em trabalhando no mercado formal, teve a sua experiência utilizada, agora na empresa FUGGI, outro laboratório fotográfico, onde exerceu a função de Colector. Com seu salário conseguiu até comprar seu"fusca", que para ele era como se tivesse adquirido sua capa voadora. O carro ajudou o nosso super herói a ser promovido, passando a motorista da empresa, ficando no local por oito meses.
Sentindo-se forte e capaz, o nosso super herói ousou novos horizontes, procurou outros trabalhos, começou a “voar” em vários locais, para conseguir o um valor maior para adquirir outros bens, além de seu “queijo-de-cada-dia”.
Não escolhia trabalho, optava pelo valor do salário. Assim, tudo era válido.Ficou cinco anos em um prédio residencial, trabalhando como Zelador de Piscina; outros três meses foi trabalhar em uma firma de cereais fazendo entregas;em seguida, retornou para o trabalho anterior, no prédio residencial, na mesma função até ser promovido a Auxiliar Administrativo.
Podemos diz que Super Mouse se virou bem na década de 80, mesmo com todas as dificuldades que o país estava enfrentando: desemprego e emprego informal. Nosso super herói, durante todo esse período, não fez parte dessa cruel estatística. Mas a década de 90 chegou, junto o vilão Neo (Neoliberalismo) que, finalmente, venceu Super Mouse arrastando-o à perversa criptonita do desemprego.
Isso mesmo, depois de doze anos de intenso trabalho e contribuição previdenciária, nosso super herói foi demitido. Agora com 42 anos de idade e as perspectivas de emprego não são nada boas. Assim, no final dos anos 90, Super Mouse se viu nas linhas coloridas dos gráficos do desemprego. Não tinha outra saída para garantir o sustento seu e de sua família, composta pela esposa e quatro filhos. Começa no trabalho informal e voltar ser o provedor da casa, para não depender de seus sogros.
Nosso super heróis parecia reagir ao vilão Neo e compra uma barraquinha de pipoca para começar nova atividade com renda. Mas esse trabalho não deu certo. Tentou vender salgadinhos, e ficou feliz com os resultados, conseguia uma renda de até um salário mínimo por mês.
Os anos passaram e os inimigos continuavam atacando, não davam trégua: desemprego,inflação ... Eram necessários esforços para as batalhas de cada dia.
A cripitonita não vai embora mais perde força e em 2007. Super Mouse fica forte novamente e consegue retornar ao mercado formal de trabalho. Que vitória maravilhosa! E olhe que já tinha 52 anos de idade e mesmo assim teve, novamente, sua carteira de trabalho assinada. Agora trabalhava em um prédio, como antigamente. Dois anos se passaram, mas com tantos combates, o coração de Super Mouse não era o mesmo e, devido a um enfarto no miocárdio, precisou de uma cirurgia... Para tristeza de nosso super herói, encontra-se há dois anos em Auxílio Doença, pela INSS.
Saberemos agora como foi à vida de seu pai, que faleceu há 16 anos com 73 anos, nasceu em Cascadura, Rio de Janeiro, começou a trabalhar cedo, com uns 14 anos, na década de 40, Brasil oferecia bastante emprego, e as leis trabalhistas estavam nascendo, mas não para o pai de super Mouse, que era mecânico informal e assim perdurou por quase toda vida. Não se sabe seu grau de estudou, quando casou sempre viveu de aluguel, até foi cedido pela sogra viúva a metade da sua casa alugada para criar seus filhos, só teve sua casa quando seu filho mais velho o comprou, quando adulto. No ultimo emprego de mecânico, mais ou menos no inicio da década de 80, conseguiu sua carteira assinada, foi quando sofreu um acidente, uma fagulha bateu em um de seus olhos, cegando-o. E sabe aqueles direitos trabalhistas que viu nascer e se desenvolver, agora desfrutava dele, foi do INSS que se sustentou até falecer, mas não conseguiu deixar a pensão para esposa, como será que ela conseguiu sobreviver?
A mãe de Super Mouse, faleceu há 12 anos, com 68 anos, sempre do lar, teve como profissão cuidar dos filhos e esposo, mas esse cuidado teve retorno, pois como não tinha heranças nem por parte de pais e nem pelo marido, foram os filhos que a manteve até o fim de sua vida. O pai dessa super mãe nada se sabe, e sobre os avós paternos do super herói a única coisa que lembra é que são daquele planeta que no século XVI invadiu o planeta Brasil e foi um dos grandes responsáveis por todas as lutas que passou nosso herói, onde hoje com seus 52 anos mesmo com toda trajetória de trabalho, como seu pai, não conseguiu até o momento nenhum imóvel, nenhum bem material, nenhuma recompensa por todas as batalhas vencidas. O seu máximo foi construir uma casa no quintal dos sogros onde vive há 18 anos.
Sabemos que a força não é mais a mesma, mas os combates não cessam, por isso Super Mouse não pode entregar-se e mesmo com menos vigor e como o malvado sistema tentando matá-lo de fome, de desgosto e desesperança; ele precisa continuar em frente, pois se ele parar de voar o sistema pega ele.

Por Emmanuelle Cristina S. Oliveira

(Esse conto é parte integrante da monografia intitulada
"A TRAJETÓRIA DE TRABALHO DOS BENEFICIÁRIOS PROVEDORES INSERIDOS NO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E SEUS ANCESTRAIS ATÉ A SEGUNDA GERAÇÃO" )

sexta-feira, 2 de julho de 2010

UM DESASTRE QUE ABALOU AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

UM DESASTRE QUE ABALOU AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS


Era um belo dia de sol e eu estava lá na praça situada nas proximidades de minha casa, acompanhando as atividades oferecidas pela associação de moradores. Tratava-se de uma praça bem cuidada, pois havia funcionários contratados para a sua manutenção. Gratuitamente, era oferecido aos moradores karatê, futebol de salão, futebol de campo, ginástica.
O pobrema é que haviam muito movimento de carros, de vido ao shopincente que tinha em sua proximidade. Era frequente as freiadas bruscas, encima dos transeunte que passava no local.
Num desses dias, se ouviu, derrepente, um plaft..tum... E todos nóis saimos para ver o que tinha ocorrido. Tava lá um omen estirado na rua, todo sanguentado... O carro, acelerou e a motorista saiu na maior disparada.
O movimento aumentava e as pessoas que estava entertida com o laser da praça, pois-se a se amontoar ao redor do atropelado.
Era um tal de chamá médico, bombero... de saber quem era o morimbundo...Até que alguém reconheceu ele e disse:
- Gente, é o francês da loja de bijuterias!
Nóis fomos todos avisar a famílha, enquanto a ambulância socorria o acidentado e levava ele para o prontossocorro.
Esse acidente, por sua gravidade, envolveu a polícia, com depoimentos dos presentes, registro de ocorrência, apreensão do veículo e... inclusive, com a avaliação do consulado dos dois países envolvidos nessa colisão, cujos representantes reclamavam uma maior atenção do governo brasileiro para o fato, solicitando ações preventivas para que tais atropelamentos não mais acontecessem.
O governo brasileiro, assim que soube da gravidade do problema, acionou imediatamente o ministério específico, pois o pobre do português atropelado estava muito mais grave que o inglês que sofreu escoriações leves.
Segundo as entrevistas dadas pelos especialistas na área, o coitado do português estava agonizando, com ventilação mecânica, internado no CTI... A avaliação dos técnicos apontava problemas de estrutura e forma, atendidos pelo orto, além de outros relacionados a ligamentos, comprometendo a concordância.
Como narradora dos fatos, após publicar o texto, fui também chamada para  prestar depoimento. Queriam saber se era caso de dolo ou de culpa e qual era o meu envolvimento no acidente multinacional.
Reproduzo, então, a minha fala junto às autoridades:
Senhores, há muito tempo que percebo tais atropelamentos. As causas são as mais diversas, mas suas raízes estão na nossa Educação, na formação de crianças e jovens.
Na atualidade, a rapidez dos meios de comunicação apresentada pelo msn, orkut etc. possibilita um maior negligenciamento no formato e nas regras da comunicação, oral e escrita. Esse fato tem contribuído para reforçar e reproduzir uma escrita com códigos e formato gráfico diferentes do oficial.
Por outro lado, quando ouvimos com atenção a linguagem falada, que é muito dinâmica, percebemos que a pronúncia das letras e das sílabas mudam de região para região, levando os incautos a reproduzirem-na também  na escrita. Evidentemente, se já atropelávamos o português, com a facilidade de acesso a outras culturas e línguas, também colidiremos com as de outras nações.
Nesse sentido, senhores, entendo que o acidente é fruto de um longo processo de negligenciamento de setores governamentais e da sociedade, necessitando de uma revisão urgente de todo o sistema educacional brasileiro.”
- Mas, e o francês?
- Ah, o francês... Ele só tinha desmaiado de susto quando viu o acidente.
- E o sangue que o cobria?
- Não era sangue. Era tinta. O francês é também um artista. Ele pinta quadros.
Observação: Caso alguém perceba outros problemas presentes no referido atropelamento, principalmente os causados pela minha ansiedade em postar o caso, por gentileza, me informe, pois os acidentados ainda estão em atendimento especializado.

Por Luzia

O COTIDIANO DE UMA TRABALHADORA SOCIAL

O COTIDIANO DE UMA TRABALHADORA SOCIAL


Shirley é uma trabalhadora brasileira, como muitas outras. Formou-se e conseguiu emprego na profissão, por meio de aprovação em concurso público. Ainda hoje, no Brasil, o setor público, principalmente o de serviços, é o que mais contrata na sua especialização do trabalho coletivo. Apesar de o Estado ser o principal empregador, e talvez por isso, o valor do salário de seus trabalhadores tem sido o mais atingido pelos interesses econômicos e políticos do grupo hegemônico.
Casada e mãe de dois filhos, o salário de Shirley compõe a renda familiar com o marido, professor. Somados, os salários não chegam a dez salários mínimos.
Devido aos altos valores imobiliários, e por investirem na educação dos filhos, o casal não conseguiu comprar a sonhada casa própria, pagando um aluguel no valor de dois salários mínimos. Os gastos domésticos consomem uma importante parte da renda familiar: despesas de condomínio, no valor de um salário mínimo; a educação dos filhos leva cerca de cinco salários mínimos - pois para o casal poder trabalhar precisa de escola em tempo integral.
Há ainda os gastos com a alimentação, roupas, transportes, energia elétrica, entre outras. Acrescentam-se as despesas necessárias a tão discutida inclusão digital, da qual ninguém pode mais ficar excluído.
Com uma carga horária de quarenta horas semanais de trabalho, Shirley e o marido acordam, diariamente, as cinco horas da manhã. Iniciam o dia organizando a infra-estrutura doméstica, viabilizando, dessa forma, as condições necessárias à frequência ao trabalho e a escola, para os filhos.
Shirley vai para o trabalho de ônibus, levando cerca de sessenta minutos, no percurso de ida e volta. Inicia sua jornada de trabalho no momento em que chega ao local, embora devesse começar as oito horas. Esse fato ocorre porque sua atividade profissional implica na relação com pessoas com necessidades das mais diversas que, talvez pelo sofrimento, não a percebem  como um trabalhador, que tem hora para iniciar a jornada e hora para terminá-la, sendo vista como a boa moça pronta para ajudar.
A instituição, onde Shirley trabalha, está organizada para cumprir os objetivos de seu processo de produção, no qual seu trabalho, na maioria das vezes, é apenas um trabalho complementar e tratado como secundário. Nesse sentido, a infra-estrutura para que desempenhe suas tarefas é muito precária: insuficiência de instrumentos de comunicação para com outras instituições; escassez de materiais para a elaboração, organização e para o registro do trabalho; falta de transportes para as visitas domiciliares e institucionais; e, o que é mais grave, falta de local adequado para o atendimento à população, e que resguarde o sigilo necessário ao que é revelado aos profissionais. Muitas vezes, para conseguir levar a termo o objetivo de seu trabalho, Shirley compra, com recursos próprios, os meios de que necessita.
Shirley atende às pessoas que chegam por iniciativa própria, encaminhadas por outros profissionais ou convidadas ao atendimento, pela própria profissional. A partir da necessidade apresentada pelo usuário/contribuinte/cidadão (Shirley está traumatizada com a palavra cliente), ou pelo fato que levou o mesmo à instituição, ela busca conhecer melhor sua realidade e a natureza dos fatores que contribuem para alguma situação de risco social.
A aproximação desse profissional a uma outra realidade, diferente da sua, ocorre apor meio da investigação (também científica). Para tanto, Shirley utiliza-se de técnicas, elabora instrumentos de coleta de dados, lê e escreve em prontuários, planeja a observação e as visitas domiciliares, prepara reuniões, pensa nas abordagens que terá com a população etc. Todos esses meios possibilitam a compreensão dos fatores sociais, econômicos, culturais, familiares, entre outros, que estão determinando ou agravando uma dada realidade.
Com esse processo de aproximação e de conhecimento da forma de vida do usuário/contribuinte/cidadão, Shirley identifica as prioridades deste e, juntos, selecionam os recursos disponíveis para modificarem os principais fatores que levam a risco social, ou aqueles que se apresentam mais urgentes e viáveis, a curto prazo.
Muitas vezes, para modificar um fator econômico, Shirley utiliza alguns programas governamentais, bem como outros oferecidos por instituições filantrópicas. No caso da política de assistência social brasileira, na maioria das vezes os programas não atendem à demanda, ou têm uma porta de entrada muito estreita e, por isso, trabalhadoras como Shirley sentem-se completamente impotentes.
Para o competente uso de seus instrumentos de trabalho, Shirley busca conhecer alguns conceitos da psicologia e da antropologia, além de outros próprios à sociologia e ao direito. Com esse aporte teórico e metodológico, Shirley tenta que sua ação profissional não seja determinada por valores pessoais e morais, ou por preconceitos e senso comum.
O conhecimento acerca de direitos sociais e da legislação existentes ajuda na compreensão do alcance dos instrumentos de comunicação e de intervenção ,construídos para possibilitar o acesso do usuário/contribuinte/cidadão aos direitos do qual possa estar excluído.
Shirley sabe que nenhuma ação é neutra e por isso busca maior consciência das consequências da lógica que imprime à intervenção, bem como à redação de seus documentos.
Além do atendimento ao público, Shirley também supervisiona estagiários. Esta outra atividade implica em estabelecer relações, diretas e indiretas, com as unidades de ensino de nível superior.
Para a atividade de supervisão de estagiários, Shirley precisa dominar alguns recursos da pedagogia, visto que deverá colocar ao alcance da compreensão dos alunos/estagiários o referencial teórico e a metodologia que utiliza, além de precisar desenvolver métodos e instrumentos para a avaliação desses outros consumidores de seu trabalho: os alunos/estagiários.
Para Shirley, essa relação com as unidades de ensino é bastante conflitante, visto que as Escolas parecem reforçar a divisão entre o trabalho “manual” - aquele que é executado junto à população - e o trabalho “intelectual” - aquele que ocorre no interior das unidades de ensino. Parecem atribuir poder, valor e status diferentes a esses trabalhadores, conforme a lógica da divisão social do trabalho.
Nesse sentido, muitas vezes a relação entre os profissionais “de ensino” e os  “da execução” ocorre de forma intrigante: os primeiros parecem que querem  (re) ensinar “como fazer”, ou que querem “capacitar” novamente os segundos, às vezes entendendo que os alunos/estagiários podem auxiliar em tal objetivo.
Para Shirley, há um certo estranhamento entre professores e os profissionais da "execução"; entre o produtor e seu produto; entre o criador e a criatura, já que alguns professores não se reconhecem ao se depararem com as atividades desenvolvidas por seus ex-alunos.
Shirley não sabe se, como diz Caetano Veloso, “Narciso acha feio o que não é espelho”, ou se ocorre, na academia, o mesmo processo de alienação que se dá com qualquer outro trabalhador quando se depara com o produto final do trabalho coletivo: não identifica o parafuso que apertou.
Consequência também do estranhamento entre o trabalhador e o produto final é a forma como os alunos/estagiários chegam ao campo de trabalho de estágio. Com algumas exceções, na maioria das vezes, o aluno apresenta uma leitura estereotipada do supervisor, construída, provavelmente, durante o seu processo de formação profissional.
A partir de uma visão preconcebida “da prática”, os alunos/estagiários tentam inverter a lógica da relação inerente ao processo de supervisão: em vez de chegarem para aprender, chegam para ensinar, com um discurso carregado de eufemismos: “queremos trocar/oxigenar o trabalho do profissional.”
Shirley já teve problemas com estagiários que imprimiam à relação um traço de desrespeito, predominando uma espécie de “ética para os outros”, criticando, em sala de aula, a prática de seus supervisores, sem tomar  cuidado de pedir autorização para divulgar o trabalho e a identidade do mesmo.
Legitimando a diferença e o valor do trabalho entre aquele que está “no campo” e o “da academia”, em muitas Escolas, é o professor, dentro das unidades de ensino, quem avalia, aprova e reprova o aluno na disciplina de estágio supervisionado. Apesar de tais experiências ocorrerem no interior de outra instiuição, denominada de campos de estágio, e, portanto, distantes dos olhos e dos ouvidos dos professores.
Assim, o trabalho do supervisor parece ser desvalorizado, quando em relação ao do professor, embora seja indispensável para legitimar o diploma dos novos profissionais. Contudo, parece não haver dúvidas com relação ao valor-de-uso do trabalho desse profissional, porém, parece haver ainda uma espécie de negação acerca do valor-de-troca dessa força de trabalho.
Shirley, como qualquer outro trabalhador, vivencia vários conflitos em seu local de trabalho, seja devido à implantação de novas tecnologias gerenciais, e ao autoritarismo nas relações de poder interprofissionais, inerentes à divisão social e técnica do trabalho.
Outras tensões perpassam o trabalho dessa trabalhadora: o conflito na relação intraprofissional, próprio à interação entre o antigo e o novo, entre a ação e a intenção, entre o crítico e o reacionário, além de outros conflitos resultantes de um mundo de trabalho marcado pela competitividade.
Como se não bastassem todos esses elementos presentes no processo de trabalho de Shirley, ela ainda convive com a angustiante discussão no campo acadêmico sobre se a profissão que escolheu é ou não considerada trabalho, se é ou não uma atividade produtiva.
Um dia Shirley foi questionada sobre a tão discutida “Questão Social”, e assim respondeu:
- “Me sinto como uma formiga, trabalhando no solo. Faço buracos, carrego folhas, adubo a terra, além de várias outras atividades. Sei que existem também outros animais que transformam este mesmo solo: tatus, tamanduás, elefantes e muitos outros. Muitas vezes, devido à distância, não percebemos o que modificamos. Em outras, quando  ficamos muito perto, não gostamos do odor ou da cor que produzimos. Contudo, gostando ou não, o solo é modificado por um trabalho coletivo e nunca é o mesmo solo no momento seguinte”.
E mais um dia de trabalho de Shirley chega ao fim, ou melhor, finda a primeira jornada, pois a segunda (a organização da vida doméstica), a terceira (o acompanhamento das atividades escolares dos filhos), e a quarta (a atualização teórica e metodológica), ela desempenhará em sua casa, nos horários destinados ao “descanso.”
Frequentemente, Shirley sai do trabalho com uma forte enxaqueca e se queixa de fadiga e estresse. Como é adepta da medicina alternativa, não vai ao médico, acreditando resolver seus problemas de saúde com do-in, açaí e maracujá. Conhece colegas que, também numa prática equivocada de automedicação, utilizam medicamentos da alopatia, inclusive ansiolíticos.
Em seu trajeto de volta para casa, Shirley se lembra de sua rotina de trabalho e confronta com outras que conhece do relato de colegas que trabalham na mesma atividade, embora em outros locais. Sabe, contudo, que apesar das diferenças elas têm muitas coisas em comum.
E no interior do ônibus, já completamente embriagada pelo cansaço, mas sorrindo, Shirley pensa em todas e em todos os colegas e, parodiando Martinho da Vila canta:

Na maioria mulheres
de todas as cores,
de várias idades,
lendo muitos autores...
Umas até
certo tempo encararam.
Outras, logo
se deseperaram
Mulheres casadas,
e equilibradas.
Mulheres solteiras,
ou por um triz.
algumas cabeças
determinadas,
tem tantas outras
alienadas
Mulheres de garra
e determinadas
Ma, todas perguntam:
Como construir a utopia
que a teoria traz?
Procuramos
discutindo as correntes
Transformar a realidade.
Mas nos frustramos,
ficamos na saudade.
Vai começando bem,
mas tudo tem um fim.
O salário é
o pão de nossa vida,
essa é que é a verdade.
É e só com muita luta,
e não apenas com a vontade,
que construiremos, um dia,
o que sonhamos, enfim.

Por Luzia

ELA É SUPER!

ELA É SUPER!




São seis horas da manhã quando toca a campainha do celular. Ela pula a cama, toma seu banho, se arruma e acorda o filho para ir à aula. A hora parece correr, pela manhã. São 6:h45min. e Carolina tem apenas quinze minutos para chegar à escola onde o filho estuda. Corre. Enfim, está lá. Seu filho lhe beija o rosto. Responde com outro beijo.
- Deus te abençoe.
Carolina continua a correr. Agora tem que vencer o trânsito do Rio de Janeiro. É hora do rush. Precisa chegar em seu trabalho até 7h30min.
- Será que ela consegue?
Você tem dúvidas? Sim, Carolina parece a deusa do tempo e chega no horário.
Entra em sala. Carolina também é professora. Seus alunos, sentados em suas carteiras, aguardam sua chegada. Ela olha com afeto aqueles rostos pré-adolescentes, cujos hormônios rebeldes insistem em denunciar a sua ação.
Aula de história. O que o mundo antigo tem de interessante para aquele grupo que cresce no mundo de máquinas eletrônicas, da comunicação rápida, num diálogo sem fronteiras, sem limites impostos pelo tempo e pela distância? São alunos que adoram a TV à cabo, atentos aos desenhos animados japoneses...
Mas, a jovem professora está totalmente linkada à nova era e começa a contar, como quem narra um filme de ação, como os Deuses gregos contribuíram para a guerra de Tróia:
“ ... Helena e Era disputam o título da mas bela deusa, mas Afrodite acena a Páris com amor da mais bela mulher do mundo, em troca do título almejado pelas musas do Olimpo. De repente, movidos pelo poder da deusa, os raios do amor se dirigem à Helena.”
- Helena, a esposa do rei de Esparta?
Pergunta-lhe um dos alunos.
- Sim! E vejam como se vingaram de Páris, as duas outras deusas preteridas.
Páris se apaixonou pela esposa do rei de Esparta e fugiu com ela, levando-a para Tróia. O rei, enfurecido, convocou os soldados espartanos para invadir Tróia. E assim, começou a guerra...”
Final da aula. Fim de mais um dia de trabalho. E, novamente, Carolina corre..., Agora para pegar o filho na saída da escola.
Ao chegar, depara-se com os olhos confiantes de sua criança que lá estava aguardando a mãe. Ele entra em seu carro e, imediatamente, lhe pergunta:
- Mãe, o que devemos buscar, a sabedoria ou a riqueza?

Por Luzia

CAPUZINHO LILÁS

CAPUZINHO LILÁS






Era uma vez uma menina de cerca de 8 anos e que se vestia, sempre, com uma blusa lilás, com capuz. Todos a conheciam como Capuzinho Lilás.
Capuzinho Lilás vivia com sua avózinha, pois a mãe foi para fora do país, tentar uma vida melhor. Não conheceu o pai, talvez, nem mesmo a própria mãe o conhecesse.
Capuzinho Lilás residia às margens de uma floresta cinzenta, desencantada, com altos espigões e raras árvores. A menina não morava dentro da floresta, mas na periferia. Em sua casa, não tinha quarto, não tinha janela, não tinha nada... Também não tinha a poesia daquela da Rua dos Bobos. Sua casa tinha um único cômodo, paredes de tijolo sem reboco, infiltrações no teto, chão de cimento grosso.
Capuzinho Lilás não via o sol, nem de dentro e nem de fora de sua casa, pois outras casas brotavam de todos os lugares. Como não havia mais espaço para as construções se expandirem horizontalmente, elas subiam numa velocidade atroz. Assim, o sol não conseguia visitar essa criança, como também não visitava as outras que ali moravam.
Capuzinho Lilás não sonhava. Seus sonhos não vinham e não era apenas porque ela ouvia, noites e dias, os sons das metralhadoras, granadas e outras armas de fogo presentes em muitas Faixas de Gaza brasileiras. A falta de sonhos de Capuzinho Lilás não ocorria também somente devido às gargalhadas histéricas produzidas pelas drogas que rolavam soltas no local. Capuzinho Lilás não sonhava porque via seus colegas saindo em urnas fechadas para nunca mais voltarem.
Capuzinho Lilás nunca viu o horizonte, desconhecia que o céu é azul, que a lua é dos poetas, que no final do arco-íris tem um pote de ouro e que a chuva é de prata...
Capuzinho Lilás nunca teve medo de lobo mau, pois conheceu vários lobos muito cedo, quando era forçada a trocar afagos indecentes por bombons ou algumas moedas que levava para casa. Quando ia para a rua, Capuzinho Lilás não encontrava ninguém que a alertasse dos perigos, talvez porque todos os possíveis estivessem ali mesmo.
Capuzinho Lilás não procurava atalhos, pois nunca tinha certeza para onde ia ou se retornaria. Essa criança não levava cesta de frutas na mão, mas um pacote de bananadas, ou paçocas, ou jujubas, ou.... E deveria despachá-lo nos sinais de trânsito e levar, em troca, uns trocados para a vovozinha que ficava em casa com os irmãos e primos menores. Se por algum motivo Capuzinho Lilás retornasse com os doces, levava uma surra.
Devido a sua vida sem cores, ela carregava uma latinha com uma espécie de massa de cheiro forte que levava sempre ao nariz. O pó que conhecia não era o de pirlimpimpim, e a pedra que chegou a sua mão não era mágica... Com frequência, ficava pelas ruas, com outras crianças que não voavam como Peter Pan. Na rua, dormia coberta por jornais, embaixo de alguma marquise.
Capuzinho Lilás não conheceu fadas, nem príncipes, apenas os sapos e as bruxas. Não ouvia fábulas, pois o conto que vivia estava para lá dos da Carochinha... Parecendo não ter fim. Sua labuta era dura, e certamente a Gata Borralheira, ao seu lado, se sentiria a mais sortuda das meninas.
Um dia, Capuzinho Lilás, ao sair para vender suas bananadas, sentiu uma espécie de pancada no peito... E, então... nunca mais... Capuzinho Lilás.


Por Luzia

sábado, 10 de abril de 2010

Machado de Assis e a Administração Pública Brasileira

Falar da importância de Machado de Assis pode, à primeira vista, parecer uma brincadeira, visto tratar-se de um fato inquestionável. Contudo, dois séculos depois de sua morte, muitos jovens e adultos, possivelmente, desconhecem sua obra e, talvez (?), jamais tenham ouvido falar de seu nome, quiçá de sua história. Alguns por ainda não terem se alfabetizado, outros por integrarem o grupo denominado de “analfabetos estruturais”, ou seja, pessoas que tiveram uma escolarização deficiente.

Poeta e romancista, Machado de Assis se destacou muito na sociedade brasileira do Século XIX, apesar de sua origem das camadas populares. Filho de operário e morador do que hoje seria considerado como periferia da antiga capital da República. (1) O destino profissional e social de Machado de Assis foi, sem dúvida, uma exceção, diferente do destino de vários outros Joaquim, Francisco ou José de sua geração.

Importante também é lembrar a passagem de Machado de Assis nas instituições públicas do Estado, pois foi também funcionário público, de aprendiz, na Tipografia Nacional, a diretor do Ministério da Aviação. Por isso, conhecia bem o interior da administração estatal, tanto os privilégios dos altos cargos quanto a exploração e os sonhos de ascensão funcional dos “barnabés”. Sonhos esses que muitas vezes viravam pesadelo, quando tais funcionários precisavam “devolver” algum cargo comissionado, assumido na interinidade , pois a ascensão funcional era de difícil realização, tendo em vista a inadequação do plano de cargos e carreira, ainda presente no serviço público, duzentos anos depois (?!). (2)

Irônica realidade e, talvez, o recorte dado à discussão surpreenda o leitor, principalmente se você fizer coro às vozes que ressoam pela mídia e que divulgam a imagem de o funcionário público ser uma espécie de uma parasita do Estado. Mas, não é assim, e também não era no período Imperial. Nem todos aqueles que trabalham nas instituições do Estado sugam ou sugaram os recursos públicos e Machado de Assis pôde mostrar isso ao descrever o cotidiano de algumas de suas personagens.

Ficção? Não. Apesar do caráter não científico de obras literárias, é a realidade conhecida que alimenta o imaginário dos autores, os quais a descrevem com novas cores, contornos e odores ao desenharem o cenário de suas histórias.

Lembremo-nos de “Dom Casmurro”, publicado no anoitecer do século XIX. Falo do pai de Capitu. Funcionário público “em repartição dependente do Ministério da Guerra” . Barnabé. Não ganhava bem...

-Então, de onde Pádua retirou dinheiro para adquirir sua casa própria? Talvez o leitor esteja indagando.

- Sim, Pádua tinha casa própria, “comprou-a com a sorte grande que lhe saiu num bilhete de loteria” . (3) E, surpreenda-se caro leitor: Pádua levava serviço para casa! Provavelmente, um esforço para obter reconhecimento profissional.

- Uma obra de ficção! Talvez seja o que você esteja pensando.

Não só. No passado isso acontecia muito, bem como na atualidade. Mas, vejo que me interroga, querendo saber onde eu quero chegar.

A falta de um plano de cargos e carreira, e a ilusão do serviço público são, apenas, alguns dos fenômenos socioculturais tratados, de forma brilhante, por Machado de Assis. Muitos dos textos que compõem a obra do autor trazem uma crítica social e política, por vezes, quase imperceptível, como em “A Mulher de Preto”, das “Crônicas Fluminenses”.

A fim de se aproximar do médico, Dr. Estêvão Soares, o deputado Meneses combinou um encontro em sua casa que foi assim relatado por Machado de Assis: “Estêvão marcara a hora da visita, que impossibilitava a presença de Meneses na Câmara; mas o deputado importou-se pouco com isso: não foi à Câmara”. (4)

Esta e outras práticas de alguns políticos insistem em saltar do passado e correm alegres e livres pelos corredores da administração pública brasileira.

Vemos que a reflexão e a crítica acerca da administração pública brasileira são contribuições importantes da obra de Machado de Assis. As provocações feitas pelo autor incentivam uma revisão de valores e de comportamentos, mostrando aos jovens e adultos, da atualidade, a responsabilidade de todos na construção de uma sociedade diferente e mais democrática.

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1 Referência à história do pai de Capitu, Pádua. E sua rápida “ascensão” ao cargo de Administrador Interino, no Ministério da Guerra. (Assis, Machado. Dom Casmurro: livro do professor / Machado de Assis. 5ª ed. São Paulo: FTD, 1999. Coleção Grandes Leituras).
2 Assis, Machado. (Op. cit.: 39)
3 Assis, Machado (Ibidem).
4 Assis, Machado. A Mulher de Preto. In, Contos Fluminenses. Literatura Brasileira. Textos literários em meios eletrônicos. Núcleo de Pesquisa em Literatura, Informática e Linguística: UFSC. Disponível em http://www.cce.ufsc.br/nupill/literatura/mulherp.html. Acesso em 18 de outubro de 2008.

Por Luzia


 Crônica selecionada pelo CBJE, edição 2011, para publicação


sexta-feira, 2 de abril de 2010

O Mistério de Mr. Blue - Parte I

Numa bela tarde, emoldurada pelas flores que insistiam em desabrochar naquele início de outono, quando as calçadas já se faziam colorir pelas folhas que, delicadamente, caiam das árvores, Scarlet notou algo diferente no vilarejo onde cavalgava. Em todos os lugares que passava, via uma intensa luz de coloração azul. Nunca havia ocorrido aquilo antes, não com aquela frequência.

Scarlet gostava de desvendar os mistérios, principalmente aqueles próprios do mundo masculinos e o fazia desafiando-os a duelar naquilo que o local produzia.  Devido a isso, ela ainda respondia às provocações do contista, e seu corpo apresentava as marcas dos arranhões do último embate. Também com o cordelista que a desafiou ao galope e, seduzida pela novidade, Scarlet ainda sentia as dores da queda que teve com a última cavalgada.

Mas não parava, desafios, enigmas, mistérios era o que marcava a sua personalidade e que a levava a criar, a viver ... Assim, aquele cavaleiro que chegava era algo desconhecido, pois não se sabia, ainda, o que o moço fazia, de onde vinha, quem era... Não se sabia se ele vinha do norte, ou do sul. Ou mesmo se era imigrante ou extra-terrestre. Poderia ser também um anjo, vindo expiar do céu. Quem saberia?

Atenta ao que observava, viu, ao longe, um vulto que caminhava sem compromisso. Chegou assim, misteriosamente, envolto em espessas brumas. A névoa que envolvia o enigmático cavaleiro parecia sair de seu próprio corpo, impossibilitando a qualquer pessoa conhecer os seus traços e mesmo sua idade. Ele se fez logo notar, devido à sua educação requintada, ao estilo dos nobres cavaleiros medievais.

Mr. Blue entrou na comunidade cumprimentando a todos, com gestos meticulosamente estudados e elegantes. Apenas à amazona, deliberadamente, evitou.

Scarlet, com olhar sagaz, seguia-o, querendo decifrar-lhe, tal como se espera fazer diante de uma esfinge: Decifra-a ou te devora!

O cavaleiro misterioso trajava vestes escuras, coerentes com a fantasia que parecia querer provocar. Na cabeça, um chapéu de abas delicadamente dobradas, caindo sobre o seu rosto, escondendo os seus olhos. Mr. Blue parecia ser alto, magro, com fortes e rijos músculos que se denunciavam sob as finas fibras de suas vestes. Tinha cabelos longos, amarrados à moda indígena.

Mas, parecendo não combinar com a personagem Mr. Blue trazia um violão no ombro e uma caneta de pena no bolso. Quem era a figura misteriosa? Indagava-se a amazona.

Scarlet não conseguia deixar o tempo ao tempo. Não! Era por demais impulsiva a ariana. Num galope rápido, pôs-se a buscar o cavaleiro que já havia desaparecido como fumaça, nos poucos minutos daquele espaço. Não havia no local nem mais a tinta azul de sua caneta, com a qual fazia questão de se apresentar.

Sem se deixar abater, Scarlet continuou a galopar e... Ei-lo, estava lá! Descansadamente recostado a uma das paredes do Canto, com uma das pernas levemente cruzada sobre o joelho da outra, com a viola na mão e um leve sorriso que arqueava, sutilmente, os cantos de sua boca e que parecia dizer: Eu sabia que tu não aguentarias de curiosidade!

Freando seu alazão, Scarlet posicionou-se frente à frente a Mr. Blue, mirando-o, fulminantemente, nos olhos, mas nada conseguia desvendar, nem mesmo a cor daquele olhar escondido por uma grossa camada de fumaça.

Scarlet tinha escolhido o formato de sua aproximação. Buscou um estilo mais agressivo, próprio aos cabras machos do nordeste brasileiro. Insistente, a moça, pegou para si as chaves da cidade, e como exímia trovadora, cumprimentou-o.

Estava deflagrado o duelo. Evidentemente, haveria um confronto entre duas cores tão fortes e intensas. Entre gêneros tão bem delimitados. Entre esgrimistas muito bem treinados.

Apesar da provocação, calmamente, Mr. Blue lançou mão da viola e, num tom grave e sereno, aumentou a espessura da névoa que produzia sobre si e declamou um lindo soneto em resposta, mantendo-se ainda mais oculto.

Esperto! Pensou Scarlet. Ele selecionou o soneto, que é próprio ao mundo feminino e que não revela o real, como o cordel, mas brinca com o imaginário, com as figuras, com os múltiplos sentidos das palavras.

A Amazona logo percebeu que tratava-se de um oponente forte, principalmente quando, tal qual a maioria das moças da cidade, diante de fato não previsto, sentiu sua tez ainda mais colorida, denunciando que fora pega de surpresa. Balançou, com discrição, um tanto quanto sem graça, um aceno com sua cabeça.

Percebeu a necessidade de sair em retirada e de estudar, de longe, os passos do cavaleiro para descobrir a que veio, o que melhor fazia no Canto e quem era. Assim, num único trote, e sem nem mesmo se desculpar, ela desapareceu.

Mas as perguntas não foram respondidas:

Quem é Mr. Blue?

Conseguirá Scarlet desvendar os segredos do misterioso cavaleiro?

Essa história teve um começo... E agora? Qual será o desdobramento?
... Aguardem!