Obra licenciada por Creative Commons

Licença Creative Commons
Este obra foi licenciado sob uma Licença Creative Commons.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Trilogia de Nova York III: Quarto Fechado



Trilogia de Nova York III: Quarto Fechado


Junho do ano da Covid-19 e eu, uma brasileira que não desiste nunca, me mantendo nessa quarentena líquida, começo a ler o terceiro livro de Paul Auster.

Destelo tela a tela do Quarto Fechado enquanto uma outra  tela à minha frente noticia o número de contaminados, de mortos,  de subnotificações, subtestagens, modificação na metodologia de apresentação dos dados epidemiológicos...

Os mortos saltam das covas e  gritam que são muito mais de trinta mil neste três de junho e   correm pelas ruas arrastando sombras.

Mortos nos hospitais, nas portas de emergências, no caminho, nas residências, nos contêineres, nos cemitérios...

Corpos estirados, gelados, inertes... Corpos de seres dos quartos fechados. Será que há seres mortos dos quartos fechados?

Penso que todos nós somos seres dos quartos fechados, com armários com portas ranhetas a reclamar  do mofo, das traças, dos cupins, da poeira... Cruéis, nos apontam todos os nossos rasgos de caráter a embaçar  o espelho...

Parece que ouço um zunido daí... Já  ouço uns mimimis...  Estão a retrucar, com um grito mudo: - Eu, não! Eu deixo a porta sempre aberta!

De cá, me resta rir. Sim, rir. Penso que somos todos seres dos quartos fechados. Alguns mantém a porta do quarto fechada, mas a atravessa, ocasionalmente.  Outros, após levarem tudo para detrás do armário, até se permitem abri-lo.

Há ainda os que, fechados, perdem a chave da porta de seu próprio quarto. Já aqueles que perdem a chave da porta quando do lado de fora, precisarão arrombá-la ou contratar um chaveiro. Estes, ao retornarem ao interior de seus quartos, talvez, não mais o reconhecerão ou, talvez, mudem de quarto ou se percam pela sala.

Sempre me preocupo com um outro grupo dos quartos fechados: aquele que não providencia uma porta...

Agora, uma parte reveladora dos quartos fechados é a janela: vidraças, toldos,  cortinas...

Cá, com o laçarote de meu pijama, volto a espiar o meu próprio quarto. Prudente, olho pela fechadura.

É incrível quanto que a fechadura de um quarto fechado pode revelar. E a fechadura, tagarela, sai mostrando tudo, havendo ou não uma chave atravessada do lado de dentro; havendo ou não trecos pendurados na maçaneta.

Pois é, somos, todos, seres dos quartos fechados. Volta e meia, alguns de nós deixamos cair chaves pelo caminho.    Há os que, após perde-las, se perdem a procurá-las;  há  os que não as procuram jamais; e  há aqueles que, encontrando chaves alheias, acreditam que abrirão as portas de seus próprios quartos.

E há um outro grupo que destaco e o apresento agora, pois, dele,  devemos nos atentar:  o dos quartos fechados que furtam as chaves dos outros.

Convivi com todos esses seres dos quartos fechados e também já tive momentos diversos...

Hoje, percebo que estamos diante daqueles dos quartos fechados a sete chaves e que estão a nos propor quarentenar com as nossas portas abertas? Há, inclusive,  manifestações dos quartos trancados, reivindicando chaves alheias, onde,  os mais trancados exigem o sequestro de nossas portas.

Tempos líquidos, quartos líquidos, portas líquidas, chaves líquidas... Experiências líquidas dos quartos fechados.

Luzia M. Cardoso

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Desencontro com Bial



Desencontro com Bial

Pandemia, funerais sem despedidas. Covas rasas alinhadas lado a lado. Valas e mais valas... Brasil de vinte e nove de maio de dois mil e vinte.

Um ano redondo, dois mil e vinte. Vinte e vinte, duplo vinte. Dois mais dois igual a quatro. Ano quatro na numerologia.

Que lições nos trazem os anos quatro? Mil setecentos e oitenta e nove foi um ano sete; mil novecentos e dezessete foi um ano nove; mil, novecentos e sessenta e quatro foi  dois; mil, novecentos e sessenta e oito, seis; dois mil e um,  três... Talvez a numerologia prefira silenciar.

Dois mil e vinte e milhares de mortos invisíveis para os que não querem ouvir. Mesmo assim,  chegamos à marca de vinte e seis mil, setecentos e oitenta e oito mortes. Hoje, na manhã de vinte e oito... Tantos oitos sugerirão alguma coisa? O número oito desenhado deitado, na horizontal, é o símbolo do infinito!? Prefiro não pensar.

Na contagem dos mortos, tiram de cá, empurram para lá e há quem se diga da fé que resolve afirmar que o vírus foi controlado. Esqueceram de combinar com o vírus, já que a linha do gráfico não dê sinais de que pretende descer.

Em relação aos métodos de controle brasileiros e o vírus, repetimos o placar da última Copa do Mundo no jogo com a Alemanha: sete a um para ela. 

Na numerologia, sete mais um é igual a oito. Novamente o oito! No ranking mundial da Covid-19, atingimos o topo, somos o novo epicentro.

Enquanto isso, hospitais de campanha ainda no papel, apesar das datas previstas nos contratos.  Governos de estado e municípios apresentando e executando planos de flexibilização da quarentena brasílis.  Havendo, ainda,  quem tenha decretado serem os templos religiosos serviços essenciais, autorizando a sua reabertura cultos.


"Antes de tudo, recomendo que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens; pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade."
Timóteo 2:1-2

O Poder da Escrita... Vale o escrito, a máxima do jogo do bicho lembrada por Pedro Bial em um de seus vídeos da web série de dez módulos vendido a mais de setecentos reais, com juros bancários nos parcelamentos.

Empresários nos levando a crer em sua solidariedade ao povo nos tempos de pandemia. E a tal web série foi ofertada a valor "promocional" de cinquenta por cento, também com juros bancários nos parcelamentos.

Em casa, tentando garantir o isolamento social, angustiada com a linha do gráfico da Covid-19 e cansada da rotina do trancamento, me inscrevi nas séries gratuitas. Vivenciei motivações e provocações interessantes enquanto isso, motivações e provocações, embora  a mercadoria não seja assim apresentada.  A web série se propõe a ofertar aulas com o objetivo de levar a escrever melhor.

A palavra aulas adquire nova conotação, nos tempos de hoje. A interação entre quem se propõe a ensinar e quem se propõe a aprender foi suprimida. Não mais uma linha de mão dupla. Agora, quem quer ensinar grava e quem quer aprender assiste. Tempos de modernos, uau!

Fico a pensar também sobre o que querem dizer com "escrever melhor", visto que não incluíram, entre os tópicos a serem desenvolvidos, nem regras gramaticais e de pontuação e nem técnica de redação.

Já inscrita e participando dos módulos gratuitos me vi diante dos exercícios propostos e... Ri. Os exercícios arrepiam qualquer professor atento aos métodos pedagógicos e à didática. 

Os exercícios deveriam ser compartilhados no grupo de Wathsapp. Os moderadores propunham a sua discussão no grupo, mas tal não ocorria. Na interação no grupo, os assuntos sempre tangenciavam.

Vejamos o porquê do tangenciamento. Apresento dois exercícios solicitados no segundo dia para que possamos pensar sobre o tempo necessário para a sua execução e o sentimento dos inscritos frente a eles:

- Identificar as possíveis relações entre o romance Adous Huxley, Admirável Mundo Novo, com a atualidade;

- Analisar Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski e Dom Casmurro, de Machado de Assis e elaborar uma história onde o enredo trate da influência da sociedade sobre o individuo, enfatizando o julgamento da sociedade.

Quase uma tese de conclusão de curso! A médio e longo prazos, uma boa proposta, mas para curto prazo, para o debate do dia seguinte, impossível, frustante. Daí o tangenciamento.

A participação no grupo de Wathsapp, no início, criava a sensação e a expectativa de proximidade com o famoso. Algo que não ocorreu. Os videos postados pelos moderadores foram pré-gravados. Haveria, no entanto, a ocorrência de uma live no terceiro dia.

Sobre esse terceiro dia cabe destacar: o dia da live com Pedro Bial. Uau!

Nesse dia houve muitas chamadas no grupo e em nossos e-mails, criando  uma grande expectativa. Mais de mil pessoas aguardando online. Anunciada para as dezenove horas, aconteceu mais de meia hora depois.

E eu me imaginava, enquanto professora, chegando em sala de aula mais de quarenta minutos da hora prevista para o início de minha aula. Uau!

Aluna ávida por conhecimentos, esperava que nessa live fosse apresentado o conteúdo do terceiro módulo.  Que frustração!

No transcorrer do dia, antes da live, quando abriram o grupo, não houve textos em PDF e, tampouco, os videos gravados por Bial.

Nos dois dias anteriores, havia um texto de cerca de onze páginas e dois vídeos gravados pelo jornalista: um apresentando o conteúdo do módulo e outro curto, fechando o dia.

O terceiro módulo se restringiu à live onde, nos primeiros minutos, Bial falou sobre a relação dele com a escrita, sobre a importância da leitura, sobre a sua falta de tempo de fazer prefácios de livros de terceiro. Em seguida, sugeriu que quem quisesse escrever sempre cortasse pela metade o que já havia escrito. "Corte!"

Depois, ficou a responder algumas perguntas a ele entregues pela administração e que não acrescentavam nada de relevante conteúdo do dia. Por fim, Pedro Bial dedicou o restante do tempo para vender o seu "curso", concluindo que estava valendo menos do que dois reais. Uau! 

O jornalista só não explicitou que são quase dois reais diários em dose meses e que multiplicados por cem inscritos daria um valor de hora aula nunca alcançável por um professor.

Talvez o que falte ao professor seja a fama, a possibilidade de, com sua imagem, vender mercadorias. A imagem do famoso vale mais do que o conhecimento e o método, enquanto o professor vivência a desvalorização do saber e da arte de ensinar.

A imagem vale mais do que mil palavras, já que todo escrito, nos tempos de hoje, é revisado e alterado. O escrito perdeu valor e a arte de ensinar se confunde com a técnica de coaching. A hora de um coach famoso vale muito mais que a hora aula de um professor de anos de estudos, prática no magistério e horas debruçado em métodos pedagógicos, elaboração de textos, aulas e exercícios a serem apresentados aos alunos.

Será que bastam motivações e provocações para levar alguém a escrever bem?

" Por isso, pela graça que me foi dada digo a todos vocês: Ninguém tenha de si mesmo um conceito mais elevado do que deve ter; mas, ao contrário, tenha um conceito equilibrado, de acordo com a medida da fé que Deus lhe concedeu."
Romanos 12:3


Nesses nossos tempos atuais onde um capitão da reserva interfere em protocolos médicos para tratamento de doenças, engenheiro-pastor dá pitacos em metodologias de apresentação de dados epidemiológicos, um jornalista se sentir professor está dentro do contexto.

Luzia M. Cardoso




terça-feira, 26 de maio de 2020

Confinadas Leituras II A Trilogia de Nova York - Fantasmas


Confinadas Leituras II
A Trilogia de Nova York - Fantasmas

Despertamos com uma granada furtivamente colocada no bolso de nossos jalecos brancos, de nossas camisas, de nossas jaquetas, calças compridas... 

Passaríamos, no mínimo, dois anos carregando esse explosivo nos nossos bolsos e que já fora programado para detonar. Parece não haver saída e, sobre o fato,  nós tomávamos conhecimento nesta última quinzena de maio.

Um maio de epidemias, não só viral, mas também moral. Tudo fora contaminado em grande escala. Não diria que em grande velocidade. Não para a imoralidade e amoralidade que a toda sociedade vitimavam.

Não. Se o coronavírus rodou o planeta e dizimou milhões de pessoas ceifando nos continentes, a simbiose da amoralidade e imoralidade instalada no Brasil foi se desenvolvendo durante séculos. Feito a bactéria de fermento na massa de pão que, acomodada, vai se expandindo, crescendo para todas as direções.

Sobre o meu sofá grená, frente a telas planas, assisto a aquarela se dissolvendo. Parece não haver mais limites entre as cores. Como se não houvessem mais lentes corretoras para astigmatismos e daltonismo.  Tudo se apresentava sendo um imenso borrão cinza-marrom-lama.

A sensação era a de estar vivendo dentro das telas de Salvador Dali. Não pelas cores, mas pelas experiências propostas.

Nada mais era sólido, firme, certo, definido.  A vida era como a memória de alguém acometido por Alzheimer: a curta não persistia e, as passadas, há tempos estavam derretendo.

Em plano alto, tudo apontava para uma grande mão em seu ir e vir frenético, à frente e atrás, frente e a frente e atrás... Nos horários de penúmbra, espalmando-se.

Insisto em desfolhar o livro de Paul Auster, agora, no segundo livro de sua trilogia.

Não sei mais se desfolhar seja a palavra ideal para descrever o ato de passar as páginas nos meios digitais. Talvez, estejamos destelando os livros...

Agora não mais nos debruçamos sobre folhas de papel, mas  sobre janelas. Passamos o tempo   espiando as janelas, de frente para as cenas iluminadas e de costas para dentro de nossos próprios aposentos. Observamos os fatos de costas para nós.

Vivemos em realidade paralela? Caímos num sono profundo e coletivo?

Estamos acoplados em algum pesadelo qualquer onde espectros elevam o tom, dia a dia...

Penso não ser um mero acaso que, nesse exato momento, eu esteja abrindo janelas e alinhando o meu binóculo para as que estão à minha frente. Não parece ser apenas uma coincidência eu  querer decifrar fantasmas.

Luzia M. Cardoso

domingo, 24 de maio de 2020

Reminiscentes Leituras: Contos de Andersen

Reminiscentes leituras: Contos de Andersen



Creio que ganhei o meu primeiro livro em meu aniversário de seis ou sete anos de idade. Por ter começado a ler cedo e ser vista sempre com algo escrito na mão, tinha fama de gostar de ler.

Aprendi a ler sem nenhuma dificuldade, certamente por que passei muitos anos como observadora  do processo de aprendizagem de minhas três irmãs mais velhas. 

Todas nós - a concordância aqui se faz com maioria, visto que só tive um irmão - fomos alfabetizadas em casa, por nossa mãe, na cartilha do ABC e pelo método de soletração.

Cada filho é um filho e, com seis, minha mãe pôde ver isso de perto. E se observar ajudou as filhas e  ao filho seguintes, as duas primeiras penaram. Penaram  tanto pelo pela novidade que se fazia obrigatória quanto por não terem tudo a chance de observar a aplicação do método em outras crianças e pelo fato de preceptora ter casa e outros filhos para cuidar, ou seja, tinha múltiplas funções.

Eu tive a sorte de ser a quinta na linha dos nascimentos e pude aprendendo a ler sem traumas.

E não foi  por minha genialidade ou mérito mas, como disse, pelos anos de observação. E foram muitos anos ouvindo "b" com "a" faz "ba"; "Paulo viu o pato".

Pato era forçado para uma criança urbana. Seria mais fácil se Paulo visse o pinto.

(- Não entendi a tua risada. Quanta malícia, hein? )

Em Madureira, onde morávamos e onde crescemos, não havia patos mas, as feiras e mercados vendiam pintos, muitos pintinhos. Quando íamos às compras com mamãe, não resistíamos àquelas fofuras. Assim, era frequente voltarmos tendo em mãos  um saquinho de papel pardo, todo furadinho para que a avezinha pudesse respirar dentro dele até onde lhe seria dada a liberdade.

Penso que seria muito mais fácil aprender a ler com palavras presentes em nossa realidade e que fizessem sentido para a gente. Contudo, nem tudo está - e nos anos 60 não estava - acessível a todos e, lá em casa, à época, aprendemos a ler com os recursos permitidos.

Como dizia, não aprendi a ler rápido por esforço meu, não. Nasci dez anos e dois meses depois da primeira filha de meus pais, uns nove anos depois da segunda e uns oito da terceira. Ou seja, fiquei longos anos observando.

Devido à minha fama de gostar de ler, uma de minhas primas já mocinhas - da geração de minhas três irmãs - me presenteou com um belíssimo livro de capa dura, tamanho A3, folhas brilhantes e todo ilustrado. Lindo!

Em minhas lembranças, quem me deu o livro foi a filha do casal de tios  e que tinha uma estante de mogno cheia de livros. Embora, às vezes, eu fique na dúvida se foi outra prima também mocinha, a Maria, filha de uma das irmãs de papai.

Imagina o quanto fiquei feliz com aquele presente. Eu havia recebido o segundo presente mais impirtante de minha vida e com o qual fiquei grudada.

O livro foi o segundo presente mais importante porque a Beijoca chegou muito antes, foi muito desejada, tanto por mim quanto por minha mãe, e era o meu xodó.

Foi naquele aniversário que conheci os Contos de Hans Christian Andersen. Havia, ali, naquele livro magico muitos contos para ler, um após o outro.

Descobri o sofrimento do Patinho Feio  com o bullying de seus irmãos. Quando o Patinho se descobriu lindo, entendi  que a beleza é subjetiva, embora adquira concretude nos valores de cada grupo social, de cada sociedade, de cada tempo.

O Soldadinho de Chumbo, A Roupa Nova do Rei, O Rouxinol e outras tantas lindas e sensíveis  histórias.

Mais que um livro eu tinha em mãos. Eu recebi permissão para voar ete um transporte com destino ao  mundo. Recebi o próprio túnel do tempo  com infinitas portas que, para serem abertas e acessar o que  elascelas guardavam bastava ir ao seu encontro, abri-las, entrar e descobrir.

E eu ia a elas, abrindo porta a porta, cruzando o espaço e desembarcando em outros países, em outras épocas. 

Quanta riqueza havia naquele livro e que carrego comigo. Um livro-baú cheio de jóias que não envelhecem e não podem ser roubadas jamais. Um verdadeiro tesouro!

Minha eterna gratidão, prima!

Luzia M. Cardoso

Confinadas Leituras I A Trilogia de Nova York - Cidade de Gelo

Confinadas Leituras I


A Trilogia de Nova York - Cidade de Gelo

Fim de maio em uma flácida quarentena orientada pelo governo do estado. Os dados das mortes confirmadas pela Covid-19 e dos contaminados em curva ascendente e acelerada. Muitos doentes e mortos não testados ficavam fora da estatística. Contudo, apesar da sub notificação, o Brasil já estava no segundo lugar do ranking mundial, abaixo, somente dos EUA. 

Entre as tarefas domésticas, administrando as saídas inevitáveis ao supermercado para fazê-las quinzenalmente; entre contatos virtuais com familiares, conhecidos e amigo, preenchia as horas com minicursos à distância, inicialmente sobre a Covid-19 e agora um outro, com o jornalista Pedro Bial, O Poder da Escrita.

Foi no curso de Bial que me fora apresentada A Trilogia de Nova York, do norte-americano Paul Auster. Livro de suspense e mistério, reúne três romances cujo primeiro foi publicado em 1985, Cidade de Vidro e, em 1986, os outros dois, Fantasma  e O Quarto Fechado.

Em cerca de meus quase sessenta metros quadrados de confinamento, há quase noventa dias, com quinzenais mergulhos no escuro para garantir o provimento dos próximos quinze, num dia em que o vento se fazia agitado, uivante e o céu amanhecia gelo, iniciei a leitura do primeiro romance, Cidade de Gelo.

Tempos novos e estranhos esses nossos. O livro que leio não me chega em meio que preenche as minhas mãos e não cheira a árvores retiradas à força da terra fértil. Não. O livro que leio chega iluminado, rígido, estéril, meio frio meio quente e suas páginas viram ao toque da ponta de um único dedo.

Tempos estranhos e eu lendo Cidade de Gelo, onde quem fala não é e quem é não fala, ou fala e é e não é.

E aprendo que "(...) se não consideramos que o homem à nossa frente é humano, existem poucas restrições da consciência para o nosso comportamento em relação a ele."

As linhas escritas que se materializam em cenário e personagens ao movimento de meus olhos me conduzem, e me acompanham passo a passo,  no caminhar sobre um chão etéreo que abriga as ruas e os prédios de Nova York. Coincidentemente, ou não, lá também era maio.

Daqui, e já lá, expectadora, assisto o encontro de duas pessoas em uma sala. Ou seriam quatro? Ou seriam cinco?

Daqui, ouço o diálogo que se trava lá em um maio qualquer da cidade de Nova York.

Aqui, confinada, com um corredor de acesso a um quarto fechado e enfrentando os meus próprios fantasmas, movidos por moinhos de ventos.

Luzia M. Cardoso

sábado, 23 de maio de 2020

Livros que Marcaram a Minha Vida III



Livros que Marcaram a Minha Vida III


O terceiro livro foi Fernão Capello Gaivota, de Richard Bach e que, se não me falha a memória, chegou lá em casa pelas mãos da primogênita de meus pais.

Como os outros livros que me marcaram, esse também li no início da adolescência, nos anos 70.  Àquela época, adoraria viver de brisa. Ah, mas não há aqui qualquer referência aquele sucesso de Isa.

Um livro leve, poético e que nos leva à reflexião, onde as personagens são gaivotas, bem como o protagonista,  Fernão Capelo.

Fernão era uma gaivota bem diferente das outras. Penso que todos os que crêem que é possível tocar e tecer a linha do horizonte se torna um estranho entre os seus.

Aquela vontade pulsante de ir além presente na personalidade de Fernão, de nunca aceitar o não como resposta à possibilidade de superar a si próprio, era o que prendia os meus olhos as páginas e que me transportava para elas.

Com Fernão voei. À baixa altura, percorri e toquei o espelho do mar. Senti as ondas passarem sob mim e, delas, percebi aquelas que estendiam suas cristas para nos afagarem. 

Com Fernão, percebi as possibilidades infinitas dos vôos e onde o meu desejo de voar recebeu fundamentais nutrientes.

Vôos rasos sob o sol, à noite, ao sabor do luar. Vôos às alturas, com loop. Dia a dia, ultrapassar o próprio limite e mergulhar de cabeça.

A ideia de vencer barreiras, naquela cabecinha juvenil, me levava a treinar trespassar todas as paredes que erguiam à minha frente.

E se as paredes eu aprendi a trespassar, com Fernão, compreendi que as montanhas devemos respeitar, apreciar, voar sobre elas, ao seu redor, subir ao cume, voando rente à encosta e, voando, descer ao colo. 

Que viagem! 

Luzia M. Cardoso

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Livros que Marcaram a Minha Vida II





Livros que Marcaram a Minha Vida II 


O segundo livro que muito me marcou foi Fazenda Modelo, de Chico Buarque. Tive a oportunidade de ter esse livro em mãos na década de 70. Por motivos que não me lembro, minha irmã mais velha que eu, a terceira na linha de nascimento, o levou para casa.

Disse em outra oportunidade que já cedo era uma leitora voraz e fui ler Fazenda  Modelo. Possivelmente, esperava encontrar belos animais, seus filhotes, pássaros coloridos, árvores frondosas e frutíferas ao soar de um alegre e saltitante riacho.

Mas o Chico que o escreveu não me consultou e, certamente, não esperava que uma menina de treze ou quatorze anos se interessasse por lê-lo.

Confesso que me amedrontava aquela capa preta com a cabeça de um touro que tinha um semblante muito zangado. Era preciso ter coragem para percorrer folha a folha. Mas para uma menina que corria em cima de muros, saltando os espaços dos portões, uma capa fechada não seria nenhum impedimento.

Não tinha tempo de caminhada para entender as metáforas de Chico, assim, vivenciava as personagens literalmente,  na real.

Com exceção do boi Juvenal, conselheiro-mor, todos os demais conselheiros da fazenda tinha nomes iniciados por k. Kkkkkkkkkkkkk! Que coisa louca!

Adorava as rimas que se infiltravam prosa à dentro e à fora,  como quem brinca de queimado.

Um aparte para explicar que queimado era como dávamos o nome daquele jogo de bola entre dois times que se posicionaram no campo, frente a frente, com o objetivo de eliminar todo o time adversário, um a um.

O instrumento usado era a bola, e o método utilizava-de da mira, força, velocidade e capacidade para se desvencilhar.  Uma bolada no corpo de algum jogador oponente para enfraquecer o time adversário. 

Acontece, contudo, que cada jogador eliminado ia para o fundo do campo do rival e, muitas vezes, acabava reforçando seu time, tanto com fortes bombas, lançamentos bem mirados, quanto fazendo o time adversário de bobo até o cansaço contribuir para que os jogadores se tornassem alvos fáceis.

Voltando à Fazenda Modelo, aqueles poemas concretamente desorganizando o ritmo e a forma da prosa me desnorteavam, como fossem uma forte bolada na cabeça.

Hoje, sei que aquele não era o momento de ler tal livro. O realismo da descrição da vida das vacas e novilhas, - levando em conta que eu me transportava para a cena e baixava em cada uma daquelas personagens -  assustavam a alma menina.

Aquela vida de objetificação de gado doía muito em mim e uma variedade de sentimentos afloravam. Passava da raiva ao nojo; da revolta à pena.

Hoje entendo aquele ritualístico samba lê lê que se decifrava nos registros dos filhotes, a função da educação fincada no mote do bom novilho não berra e a sarcástica e metodológica providência da Fazenda aos bovinos velhos.

Naquela idade, eu não poderia compreender tudo o que Chico dizia, por isso, sofri tanto com a vida de gado que experimentei na Fazenda Modelo.


quinta-feira, 21 de maio de 2020

O Livro mais Marcante de Minha Vida

Fazendo o curso  "O Poder da Escrita", com Pedro Bial, como exercício, fomos solicitados a escrever sobre o livro mais marcante de nossas vidas. Compartilho aqui a minha história.




         O Livro mais Marcante de  Minha Vida

Foram três livros que marcaram a minha vida, ou melhor, que muito me impressionaram: O Príncipe, de Nicolau Machiavel; Fazenda Modelo, de Chico Buarque; Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach. Eles chegaram a mim nesta ordem e o primeiro que li, com menos de treze anos de idade, foi O Príncipe, de Nicolau Machiavel.

Pode parecer estranho para quem me ler o fato de um livro complexo desse ter despertado o interesse de uma menina daquela idade.

Posso explicar. Apesar de ter origem em família pobre, com pais semi-alfabetizado,  livros, folhetos e revistas acabaram vindo às minhas mãos.

Meu pai, embora de pouca instrução, adorava ler livros de bolso e tinha uma coleção que eu lia também, já que aqueles livrinhos ficavam ao meu alcance, talvez , devido à simplicidade de nossa casa e de seu mobiliário.  Eram livros de ação, de espionagem, de faroeste que prendiam a minha atenção até o derradeiro ponto final.

Éramos uma família de oito pessoas, contando com meus pais.  Eles tiveram cinco filhas e um filho e eu era a quinta na linha, com três irmãs mais velhas que adoravam revistas de fotonovelas e modas,  e que também lia. Ou seja, era uma leitora voraz e compulsiva.

Havia ainda um casal de tios muitos queridos com uma casa onde havia uma estante de mogno cheia de livros que me fascinavam. 

A estante em mogno bem lustrada, com prateleiras de livros encadernados com capa dura, alguns com  letras douradas, outros com letras prateadas... Ah, era um verdadeiro tesouro!

Íamos com frequência para lá, como eles também iam para a nossa casa. Nas ocasiões que íamos para a casa deles, eu ficava onde estava aquela estante e foi ela quem me apresentou O Príncipe de Machiavel. Sim, a estante.

Um determinado dia, as letras prateadas daquela capa dura me chamaram. Meus olhos curiosos e infantis foram fisgados pelo livro. Penso mesmo que naquele dia a estante se iluminou mais naquele canto onde estava o livro. O Príncipe não passaria desapercebido àqueles olhos de garota tímida e romântica.

Contudo, já ali, pude verificar que todo príncipe, um dia, vira sapo. Aquela estante me vendeu gato por lebre e Machiavel, bom sedutor, me conduziu até às últimas páginas.

Quantos príncipes fajutos! Que decepção! Foram os meus sentimentos página a página do livro.

Mais decepcionada ainda fiquei quando me deparava com as práticas usadas  para os príncipes se legitimarem no poder: terror, medo, força, opressão,  escravidão, traição, fraude, crueldade e manipulação de necessidades.

E a princesa? E o amor? Oras, concluía, a princesa só serviria ao príncipe para aumentar o seu império, o seu poder?

Aquela menina que fui caiu no conto da estante ou, talvez, sendo boa educadora, ela, a estante me revelava o lado sombreado da face dos príncipes.

Claro que não li o livro com os mesmos olhos que o li quando solicitada pela universidade e, tampouco, com os olhos da mulher que sou hoje. 

Não, à época, li O Príncipe de Machiavel com os doces olhos da menina que fora ensinada a sonhar com o príncipe encantado apresentado pelos livros das histórias infantis.

                               
 Luzia M.Cardoso


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Por que somos o que somos e temos o que temos?



Por que somos o que somos e temos o que temos?

O que somos e o que temos são apenas por méritos nossos?

Muito tenho ouvido e lido sobre o que denominam de meritocracia, ou seja, o predomínio de quem tem mais méritos, entendido como o esforço, o empenho e seus bons resultados. Dentre os defensores dessa forma de organização social, vejo muita gente descrevendo os seus louros, batendo no peito orgulhoso e dizendo: "Sou o que sou e consegui o que consegui por meus esforços próprios!" 

E eu sempre me pergunto: Será?

Não somos os resultados apenas de nossos esforços e empenhos individuais, mas dos esforços e empenhos de todas as gerações passadas, dentro e fora de nosso grupo familiar, pois foram eles que garantiram as condições que hoje nos favorecem. 

Vejamos:

∆ Para nascermos precisamos de uma família, seja ela nuclear, extensa, mononuclear ou outra configuração. Não só necessitamos ser gerados como necessitamos ser cuidados, pelo fato de que bebês são completamente dependentes. 

∆ Na infância, também precisamos de um conjunto de proteção social que garantiram o nosso desenvolvimento físico, emocional, cognitivo, intelectual, social e cultural e para nos manter longe de riscos.

∆ Também na adolescência, na juventude, na idade adulta e na velhice precisamos de um conjunto de proteção social para sustentar a nossa vida com qualidade e produtividade. 

E aí é que vem a base de tudo! Não garantimos a nossa proteção social de forma isolada, nem nós e nem o nosso grupo familiar. A proteção social é uma construção coletiva, embora, em nosso país, ela seja ofertada de forma pouco equânime.

Mesmo os filhinhos de famílias burguesas não têm a sua proteção social garantida apenas pela renda e bens de seus familiares, mas pela exploração da força de trabalho de tantos e tantos trabalhadores que garantem, não somente, esse acúmulo de riquezas, mas a produção de todos os bens e serviços desfrutados de forma privilegiada por essa minoria.

Mas mesmo que haja trava em em alguns olhos e que só enxerguem a si mesmo e às famílias de origem, já neste pequeno universo se percebe que o que somos hoje nós devemos, no mínimo (embora não só), aos nossos ancestrais, aos nossos pais e, em tantos casos, como o meu, aos nossos irmãos. Sim, pois não é raro, nas famílias trabalhadoras, os irmãos mais novos usufruírem de condições melhores que seus irmãos mais velhos, graças aos esforços destes para aumentar a segurança e a renda familiar.

Pois é, assim, por exemplo, se eu consegui chegar ao nível superior, sendo aprovada em vestibular e tendo conseguido ingressar em universidade pública; se consegui fazer pós-graduação stricto senso; e se consegui, por meio de concurso público, chegar a um emprego também público, devo agradecer ao conjunto de trabalhadores que lutaram pelas leis trabalhistas, pelo ensino público e gratuito, pelo acesso aos cargos públicos por meio de concurso público, entre outras tantas bandeiras erguidas nas lutas dos movimentos sociais e trabalhadores. 

Devo agradecer aos meus ancestrais, pela base, mesmo que frágil, que construíram para os meus pais. Devo agradecer aos meus pais, pela batalha diária para me oferecer condições de vida melhores que as que tiveram. Devo agradecer ao meu irmão e às minhas irmãs, que trabalharam para aumentar a nossa segurança e renda familiar. Devo agradecer a tantos amigos e amigas, pelo colo acolhedor, ombro e mãos estendidas, ofertados nos momentos cruciais de minha vida.

 Tudo isso formou a minha rede de proteção social, indispensável para o que sou hoje!

Então, o que sou hoje não é mérito meu apenas.  É mérito de um povo sofrido, trabalhador, lutador e solidário! Sou o que sou hoje por mérito das lutas do povo brasileiro (da classe trabalhadora), pois foram essas lutas por melhores condições de vida que construíram as bases da proteção social que necessitei e necessito!

Lutemos, então, para não deixarmos desmontar a proteção social que foi garantida com esforço, luta, suor, lágrimas e sangue! Lutemos para garantir um sistema de proteção social mais equânime, universal e integral, de forma a alcançar a toda a população, garantindo uma sociedade, conforme propôs o velho Marx, que dê a cada um conforme as suas necessidades e que exija de cada um conforme as suas possibilidades.

Luzia M. Cardoso