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segunda-feira, 4 de junho de 2012

Sacerdócio, profissão ou trabalho?



Na minha infância era comum os adultos perguntar-nos: “O que você vai ser quando crescer”?  Ah, nossos olhos brilhavam quando pensávamos naqueles profissionais que admirávamos. Dizíamos, então: “Eu vou ser professora.” “Eu quero ser médica.” Poder ensinar e curar parecia ser muito lindo. Diziam que se tratava de sacerdócio, pois médicos e professores teriam o dom de curar e ensinar.
Na literatura brasileira essa questão do futuro das crianças por meio da carreira também aparece retratando que, nas famílias mais tradicionais, um deveria ser padre e o outro médico ou advogado. Os mais desapegados às questões materiais escolhiam a medicina, buscando aliviar as dores do corpo e da alma. Os mais materialistas acabavam optando pelo curso de direito. Diferentemente da classe social a que pertence a maioria dos médicos da atualidade, no Século XIX até meados do Século XX eles pertenciam à elite brasileira.
Ah, nossa elite! Tão gananciosa. Desde o passado querendo alcançar o status e o ouro das elites europeias e norte-americanas: viagens, luxo e poder.  Mas embora com riqueza inferior à almejada, as famílias daqueles jovens podiam oferecer-lhe conforto e concretizar os sonhos vendidos no mercado.
No passado, a sociedade respeitava muito os médicos, reconhecendo a sua abnegação e seriedade. Para a população mais pobre era Deus no céu e o médico na Terra. Algumas pessoas até os achavam distantes e frios. "Elitistas", diriam outras. Sim, pode ser, mas eram considerados eficientes, muito competentes e comprometidos com as questões que envolviam a doença.  Eram médicos generalistas e por isso tratavam da doença em qualquer parte do corpo. Atendiam a família, e assim, tinham o histórico das doenças familiares. Apesar de naquela época haver pouca tecnologia na área de diagnósticos, pela história das doenças familiares os médicos já faziam prevenção.
E não me lembro de personagem médico da literatura brasileira que pensasse em enriquecer com a medicina. Evidentemente que, à época que falo, os médicos atendiam às classes que podiam pagá-los, e não cobravam pouco. Mas havia também aqueles que trabalhavam nos raros hospitais públicos, beneficentes e Santas Casas e esses, talvez por estarem garantidos pela herança da família, não pareciam querer fazer da profissão a ponte para enriquecer. Evidentemente que os salários pagos aos médicos que atendiam nessas instituições eram muito superiores ao que se paga atualmente
Mas tudo muda. Como dizia Marx, “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”.  E a sociedade mudou. E a medicina também mudou.  Ocorreram muitos avanços na área da medicina diagnóstica e farmacêutica. Os médicos generalistas, os Clínicos Gerais, foram perdendo status para os especialistas. E a sociedade passou a valorizar mais os Cardiologista, Endocrinologista, Nefrologista, Neurocirurgião, Oncologista etc. E as piadas entre os próprios médicos começavam a surgir, de forma a reforçar a estratificação criada pela sociedade das indústrias. Lembro-me a seguinte piada que ouvi de um médico, quando cursava a faculdade: “Sabe qual é a diferença entre o ortopedista e o obstetra? É que o ortopedista precisa usar a força”. 
E com os avanços tecnológicos e farmacêuticos, surgiram também os grandes laboratórios e começava a ficar impraticável o exercício autônomo da medicina. O diagnóstico passava a exigir exames diversos cujo valor poucas pessoas poderiam pagar. Assim, vários médicos se filiaram à medicina de grupo e buscaram o trabalho assalariado nos grandes hospitais e clínicas. Começava a decadência do poder aquisitivo e do status dessa categoria profissional, visto que, pela lei do mercado, o valor do salário do trabalhador é calculado em proporção inversa ao número de trabalhadores capacitados para o trabalho, bem como ao valor que se dá ao que se produz.  E agora o médico é também um trabalhador assalariado.
Hoje, apesar das reivindicações por aumento salarial, condições de trabalho etc. ainda é o setor público quem mais emprega os profissionais de saúde, incluindo os médicos. E nas instituições públicas, contrariando o preconizado pelos idealizadores do Sistema único de Saúde, SUS, o atendimento destina-se às classes-que-vivem-do-trabalho, utilizando-me aqui do conceito criado por Ricardo Antunes, no livro “Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho”.
A sociedade de consumo não dá valor às dores do corpo e da alma da população, a não ser para vender medicamentos e planos de saúde. O chamado “povão” só é lembrado no momento de atraí-lo para a compra de bugigangas, para financiamentos e para votos nas eleições. Depois?  Ah, depois o povo é esquecido.
Nessa lógica, quando é que, sem pressão popular, o governo e os empresários da saúde vão pagar melhor os profissionais de saúde, entre eles os médicos que atendem o povão? Já respondo: “Nunca!”
Apesar disso, na atualidade, parece que os jovens estudantes universitários levam um choque ao ingressarem no mercado de trabalho, principalmente  aqueles que escolheram o curso de medicina e imaginaram-se especialistas conceituados, sonhando em conseguir a ascensão social por meio da profissão.
Sim, ascensão social, pois no Brasil do Século XXI a classe social de origem de muitos médicos é outra, quando comparada as do início do Século XX. Provavelmente, a grande maioria não tem herança para resguardá-los e vivem do que conseguem com a venda de sua força de trabalho.
Ah, que choque!  A realidade vira uma tortura: baixos salários, falta de equipamentos, emergências lotadas, pessoas com doenças graves e sem possibilidade de cura, doenças decorrentes da falta de comida, dieta pobre, exploração e acidente de trabalho, da falta de saneamento básico etc., etc. E isso não se trata apenas com medicamentos e máquinas sofisticadas para cirurgias e transplantes. Não, isso se trata com melhor distribuição de renda e socialização dos meios de produção.
E o médico perde o status social e o poder.
E aí o que vemos na atualidade? Profissionais de saúde com várias jornadas de trabalho, sacrificando o horário que deveriam dar nas instituições públicas. Essa situação concorre para a falta de profissionais no atendimento à população. Vemos ainda profissionais frustrados, descontentes, trabalhando contrariado, o que leva ao atendimento negligente e, consequentemente, ao diagnóstico e tratamento equivocado.  É o que as notícias dos jornais têm revelado.
E a solução?  Ah, certamente os profissionais de que falo acham que a solução está no aumento do salário e na equipação das unidades de saúde. Será? 
Possivelmente, no futuro próximo, caso se implante o ponto eletrônico nas instituições públicas e se por acaso a presidente Dilma mantiver a proposta de equiparar o valor da hora de trabalho dos médicos aos dos demais profissionais de saúde de nível superior, a tendência talvez seja de evasão dos médicos do serviço público em direção ao serviço privado, na ilusão de serem lá mais valorizados.
Fico cá a pensar com os meus botões: “Quanto tempo será que vai durar essa estratégia na lógica do capital?”


Luzia M. Cardoso