Na
minha infância era comum os adultos perguntar-nos: “O que você vai ser quando
crescer”? Ah, nossos olhos
brilhavam quando pensávamos naqueles profissionais que admirávamos. Dizíamos,
então: “Eu vou ser professora.” “Eu quero ser médica.” Poder ensinar e curar
parecia ser muito lindo. Diziam que se tratava de sacerdócio, pois médicos e
professores teriam o dom de curar e ensinar.
Na
literatura brasileira essa questão do futuro das crianças por meio da carreira
também aparece retratando que, nas famílias mais tradicionais, um deveria ser
padre e o outro médico ou advogado. Os mais desapegados às questões materiais
escolhiam a medicina, buscando aliviar as dores do corpo e da alma. Os mais
materialistas acabavam optando pelo curso de direito. Diferentemente
da classe social a que pertence a maioria dos médicos da atualidade, no Século
XIX até meados do Século XX eles pertenciam à elite brasileira.
Ah,
nossa elite! Tão gananciosa. Desde o passado querendo alcançar o status e o
ouro das elites europeias e norte-americanas: viagens, luxo e poder. Mas embora com riqueza inferior à almejada, as
famílias daqueles jovens podiam oferecer-lhe conforto e concretizar os sonhos vendidos
no mercado.
No
passado, a sociedade respeitava muito os médicos, reconhecendo a sua abnegação
e seriedade. Para a população mais pobre era Deus no céu e o médico na Terra.
Algumas pessoas até os achavam distantes e frios. "Elitistas", diriam outras. Sim, pode
ser, mas eram considerados eficientes, muito competentes e comprometidos com as
questões que envolviam a doença. Eram
médicos generalistas e por isso tratavam da doença em qualquer parte do corpo.
Atendiam a família, e assim, tinham o histórico das doenças familiares. Apesar de
naquela época haver pouca tecnologia na área de diagnósticos, pela história das
doenças familiares os médicos já faziam prevenção.
E
não me lembro de personagem médico da literatura brasileira que pensasse em
enriquecer com a medicina. Evidentemente que, à época que falo, os médicos
atendiam às classes que podiam pagá-los, e não cobravam pouco. Mas havia também
aqueles que trabalhavam nos raros hospitais públicos, beneficentes e Santas
Casas e esses, talvez por estarem garantidos pela herança da família, não pareciam
querer fazer da profissão a ponte para enriquecer. Evidentemente que os
salários pagos aos médicos que atendiam nessas instituições eram muito
superiores ao que se paga atualmente
Mas
tudo muda. Como dizia Marx, “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”. E a sociedade mudou. E a medicina também mudou.
Ocorreram muitos avanços na área da
medicina diagnóstica e farmacêutica. Os médicos generalistas, os Clínicos
Gerais, foram perdendo status para os especialistas. E a sociedade passou a
valorizar mais os Cardiologista, Endocrinologista, Nefrologista, Neurocirurgião,
Oncologista etc. E as piadas entre os próprios médicos começavam a surgir, de
forma a reforçar a estratificação criada pela sociedade das indústrias.
Lembro-me a seguinte piada que ouvi de um médico, quando cursava a faculdade: “Sabe
qual é a diferença entre o ortopedista e o obstetra?
É que o ortopedista precisa usar a força”.
E
com os avanços tecnológicos e farmacêuticos, surgiram também os grandes laboratórios e começava
a ficar impraticável o exercício autônomo da medicina. O diagnóstico passava a
exigir exames diversos cujo valor poucas pessoas poderiam pagar. Assim, vários
médicos se filiaram à medicina de grupo e buscaram o trabalho assalariado nos
grandes hospitais e clínicas. Começava a decadência do poder aquisitivo e do
status dessa categoria profissional, visto que, pela lei do mercado, o valor do
salário do trabalhador é calculado em proporção inversa ao número de
trabalhadores capacitados para o trabalho, bem como ao valor que se dá ao que
se produz. E agora o médico é também um
trabalhador assalariado.
Hoje,
apesar das reivindicações por aumento salarial, condições de trabalho etc.
ainda é o setor público quem mais emprega os profissionais de saúde, incluindo
os médicos. E nas instituições públicas, contrariando o preconizado pelos
idealizadores do Sistema único de Saúde, SUS, o atendimento destina-se às
classes-que-vivem-do-trabalho, utilizando-me aqui do conceito criado por
Ricardo Antunes, no livro “Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as
Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho”.
A
sociedade de consumo não dá valor às dores do corpo e da alma da população, a
não ser para vender medicamentos e planos de saúde. O chamado “povão” só é
lembrado no momento de atraí-lo para a compra de bugigangas, para
financiamentos e para votos nas eleições. Depois? Ah, depois o povo é esquecido.
Nessa
lógica, quando é que, sem pressão popular, o governo e os empresários da saúde vão pagar melhor os profissionais de saúde, entre eles os
médicos que atendem o povão? Já respondo: “Nunca!”
Apesar disso, na atualidade, parece que os jovens estudantes universitários levam um
choque ao ingressarem no mercado de trabalho, principalmente aqueles que escolheram o curso de medicina e imaginaram-se
especialistas conceituados, sonhando em conseguir a ascensão social por meio da
profissão.
Sim,
ascensão social, pois no Brasil do Século XXI a classe social de origem de
muitos médicos é outra, quando comparada as do início do Século XX.
Provavelmente, a grande maioria não tem herança para resguardá-los e vivem do
que conseguem com a venda de sua força de trabalho.
Ah,
que choque! A realidade vira uma
tortura: baixos salários, falta de equipamentos, emergências lotadas, pessoas
com doenças graves e sem possibilidade de cura, doenças decorrentes da falta de
comida, dieta pobre, exploração e acidente de trabalho, da falta de saneamento
básico etc., etc. E isso não se trata apenas com medicamentos e máquinas sofisticadas
para cirurgias e transplantes. Não, isso se trata com melhor distribuição de
renda e socialização dos meios de produção.
E
o médico perde o status social e o poder.
E
aí o que vemos na atualidade? Profissionais de saúde
com várias jornadas de trabalho, sacrificando o horário que deveriam dar nas
instituições públicas. Essa situação concorre para a falta de profissionais no
atendimento à população. Vemos ainda profissionais frustrados, descontentes,
trabalhando contrariado, o que leva ao atendimento negligente e,
consequentemente, ao diagnóstico e tratamento equivocado. É o que as notícias dos jornais têm revelado.
E
a solução? Ah,
certamente os profissionais de que falo acham que a solução está no aumento do
salário e na equipação das unidades de saúde. Será?
Possivelmente, no futuro próximo, caso se implante
o ponto eletrônico nas instituições públicas e se por acaso a presidente Dilma mantiver
a proposta de equiparar o valor da hora de trabalho dos médicos aos dos demais
profissionais de saúde de nível superior, a tendência talvez seja de evasão dos
médicos do serviço público em direção ao serviço privado, na ilusão de serem lá
mais valorizados.
Fico cá a pensar com os meus botões: “Quanto tempo será
que vai durar essa estratégia na lógica do capital?”
Luzia M. Cardoso
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