Pensando melhor, o título adequado é
"Alma Penada".
Determinados segmentos da classe média brasileira
sempre demostraram certo prazer em se medir em relação aos outros segmentos
sociais por meio do “quem me indica”. Essa “medida de valor” é usada como que
para conferir maior status social, na medida em que lhes garante acesso a
serviços, embora na maioria em instituições públicas.
A possibilidade de tal prazer, no entanto, parecia
vir sendo abalada quando da ascensão de um operário nordestino ao maior cargo
do país.
Pelo menos para o acesso a alguns serviços
públicos, o tal operário havia mudado as regras do jogo, inviabilizando o “quem
me indica”, democratizando ainda mais, inclusive, o acesso por
concurso público, quando instituía a concorrência entre pessoas em condições
semelhantes, introduzindo as quotas étnicas e indígenas, para pessoas com
deficiência e, no ensino universitário, também para aqueles provenientes de
escolas públicas.
Talvez por isso, o ódio a tal operário se reverbere
nos setores dessa classe média que muito se beneficiavam do “quem me indica”.
Com Machado de Assis, no conto “O Espelho: esboço
de uma teoria da alma humana”, há a possibilidade de se refletir sobre estas
questões da alma humana, para a compreensão das origens do sentimento hostil
que se mantém em setores da sociedade brasileira por aquele que deu
oportunidades a quem não as tinha.
Nesse conto, Machado de Assis trata das
contradições entre ser e parecer ser, entre a imagem que passamos e o que somos
de fato, classificando aqueles que nos veem como a nossa alma externa e as
nossas impressões de nós mesmos como alma interna.
Ao aproximarmos a tradução de Machado de Assis a
respeito da alma externa ao comportamento de segmentos das classes médias,
percebe-se que parece que eles perderam uma de suas almas externas quando o
glamour do “quem me indica” não determinava mais o acesso a universidades,
serviços e empregos públicos e, por meio deles, às oportunidades de melhores
salários no mundo do trabalho e ascensão social.
Com a ascensão do operário ao poder maior, setores
da classe média perdiam, também, a alma externa que os referenciava por ter um
“quem me indica”, os setores economicamente mais baixos.
Não havia mais brilho em dizer “sabe fulano?
Conseguiu um bom emprego por indicação do beltrano, empresário tal! Veja,
sicrano, que é amigo daquele político, com um empurrãozinho, entrou para a
universidade!
Ah, isso não dava mais glamour, não! Agora, isso
demonstrava incapacidade para concorrer em situação de igualdade e lealdade.
Uma situação dessa envergonhava, não mais enaltecia ninguém.
Nesse sentido, na alvorada do Século XXI, aqueles
setores medianos da sociedade brasileira precisariam mudar o seu comportamento
social para galgarem os degraus mais altos e tão cobiçados pelos mesmos.
Ao mesmo tempo em que tais segmentos sociais
medianos perdiam a sua alma externa, viam enfraquecer a função de seu papel
lacaio e grudento de alma externa dos segmentos mais ricos da sociedade. Ora,
ora, quem é que precisa de pelego que não mais influência ninguém?
Perdendo a função de alma externas dos ricos, tais
segmentos sociais da classe média perdiam, também, o seu brilho purpurina e os
farelos de regalias.
E, aí, dá para compreender a origem de tanta raiva
e hostilidade, pois se a alma externa é imprescindível, ficar sem ela é mesmo
imperdoável!
Luzia M. Cardoso
Revisado e ampliado em 05\06\2019.
Referência: ASSIS, Machado. O Espelho, in Papéis Avulsos. Belém, Pará: NEAD, sem data. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000223.pdf
Referência: ASSIS, Machado. O Espelho, in Papéis Avulsos. Belém, Pará: NEAD, sem data. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000223.pdf