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sexta-feira, 24 de agosto de 2012

As Relvas de Outrora



Sete horas e já estou nas ruas tensas dos subúrbios carioca. É a rotina. Acordo com o toque do celular, às risadas programadas por meu filho. Café rápido e retorno ao quarto: “- Vamos, filho, levanta.” E o cachorro aos pés, insistindo em se fazer notar com estranhos presentes que vai deixando em meu caminho. Tenho que recolhê-los, não tem jeito. “- Filho, levanta!” E sigo para o banho, roupas, conferência do material de aula. “- Filho, levanta!” E vem arrastado, molenga, joga o cabelo para um lado, joga para o outro, vai e volta ao espelho, como se pactuasse com o relógio. Ledo engano. Os ponteiros disparam.  Ah, adolescência!

Retornando, passo em frente ao Parque Ary Barroso e, de repente, sinto-me arrastada pela força das gritarias de crianças que correm, saltam e brincam nas gramas, aos impulsos dos frenéticos vaivéns dos balanços. E deslizo nas rampas dos escorregas, ouvindo os sussurros românticos dos jovens à sombra das frondosas árvores... E vi-me lá na minha diversão favorita, na parte mais alta do Parque para descer rolando pela grama. Uma delícia... A relva úmida de orvalho que, generosa, ofertava um doce perfume, o vento espalhando os sonhos que meus olhos desenhavam no céu, ao comando da trilha sonora dos pássaros...

Sinto um gosto de saudades enquanto guio o carro pela rua do Parque e percebo que elas correm nas grades que hoje fecham aquele cinzento parque, agora ocupado pelas paredes frias da UPA e da Base dos Militares da Força de Pacificação. Portão trancado para o Parque, árvores com a copa em palha revelando o longo inverno, brinquedos fantasmas vagueiam pelo tempo, gramas sentidas por não mais poderem usufruir das gritarias infantis e dos romances juvenis... E pendurado nas grades, um cartaz indicando a programação da Arena Carioca.

O Parque Ary Barroso era uma das poucas áreas de lazer da região. Tinha uma cascata, lago, árvores diversas, situado nas malhas de saída para a Avenida Brasil, perto da linha Férrea da Leopoldina e do Hospital Getúlio Vargas. Mas não resistiu ao abandono e com o crescimento das comunidades periféricas, tornou-se acesso aos morros do Complexo do Alemão, utilizado também como rota de fuga de bandidos e isso afastou de lá as crianças e os adolescentes da região. Agora, sedia a base das Forças de Pacificação a partir de 2010 e a UPA 24h, descaracterizando o local. E o que era para ser um bosque, um espaço de lazer, idealizado nos anos 60, com área de 50 mil metros quadrados, mantém-se ocupado por equipamentos da administração pública para a execução da política de segurança e da agonizante política de saúde brasileira.

E as crianças e os adolescentes que moram nos arredores assistem arrancar-lhes a esperança, com noites aterrorizadas pelos gritos agonizantes de seus sonhos, dilacerados sob a caneta impiedosa dos nossos governantes.

Luzia M. Cardoso
Rio de Janeiro, 24 de agosto de 2012