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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Escutas



Escutas


O decreto de intervenção federal no Rio de janeiro, com a nomeação de um general do Exército para assumir o comando da Segurança Pública do estado e o resultado de algumas enquetes que demostram um percentual importante de pessoas acreditando que essa intervenção irá por fim à onda de violência me remetem às vozes de algumas manifestações, coletivas e isoladas, nos anos que antecederam o golpe.
Naqueles anos, as mídias oficiais e alternativas apresentavam vídeos e fotos com pessoas solicitando a intervenção militar para pôr termo à corrupção e à violência urbana. Saudosistas do período do governo militar que, decerto, não viveram na pele o terror dos desaparecimentos, das extradições e da tortura, insistindo na negação das mazelas daquele período (escândalos de corrupção, escassez de alimentos, inflação e desemprego). Alguns jovens, talvez filhos desses saudosistas também reverberam as vozes de seu grupo social. Estes não fazem sequer ideia da violência e crueldade dos tempos passados.
Passado o espanto, busco entender o que queriam, de fato, dizer aquelas vozes que se sentiam ameaçadas pela democracia e por políticas que promovam a justiça social. O que querem que ouçamos as pessoas que confundem equidade com ditadura comunista¿
Chegando mais perto, percebemos que algumas daquelas pessoas não pensam duas vezes na hora de insinuar o “cafezinho”, quando são pegos infringindo as leis de trânsito. Vemos muitas ultrapassarem pelo acostamento, cortando pela direita, costurando, jogando o farol alto em quem está a sua frente.
Em alguns momentos, quando olhamos de perto, vemos os que adotam a prática de levar idosos e crianças para bancos e supermercados a fim de usufruírem de seus direitos especiais. Numa praça de alimentação cheia, observamos que não se inibem em ocupar uma mesa quando ainda nem compraram o alimento que vão comer, deixando outros com a bandeja na mão de pé.
Nos transportes coletivos, alguns sentam em bancos preferenciais não levantando, de forma alguma, para aqueles que têm direito, gestantes, pessoas com criança de colo, idosos, obesos e pessoas com deficiência.
Algumas são baloeiros. Soltam balões, apesar dos incêndios e de ser prática proibida. Tantos andam pelas calçadas com seus cachorros e deixam, por lá, os seus dejetos. Ou compram animais silvestres para o seu próprio deleite. Há os que não pensam duas vezes antes de ofender, de enfiar um soco na cara ou mesmo de puxar uma arma, num conflito qualquer, frente àqueles que os contrariam em suas relações em sociedade.
Verificamos que alguns se envaidecem em alardear as garantias do padrinho que lhes deu acesso a empregos, cargos e bons salários. Têm aqueles que defendem o Estado mínimo e a privatização das instituições públicas, mas se beneficiam, ou se beneficiaram, das mesmas. Muitos, tendo recursos para arcar com os custos da educação, por exemplo, não se constrangem em usufruir da rede pública, tampouco, abrem mão de seus empregos ou cargos na máquina estatal para viverem nas ondas do mercado privado.
De perto, vemos que muitos que defendem o ordenamento neoliberal e governos autoritários têm teto de vidro. Daí, surge a pergunta: o que, de fato, estão reivindicando essas pessoas?
Se refletirmos sobre a prática social de muitas dessas pessoas, concluímos que há deficiência de limites. Muitas são egocêntricas e não pensam na coletividade. Não sabem esperar, ceder, dar lugar, nem ouvir não. Seus valores e princípios são frágeis. Por isso, talvez, ao intuírem a ausência de limites em si mesmos, reivindicam governos autoritários, desejando a ordem através do medo. Talvez, queiram apenas limites externos explícitos e supervisionados.  
Ou, talvez, não seja nada disso. Talvez, muitas dessas pessoas queiram apenas manter uma fachada ilibada, defendendo a própria falta de freios. Talvez, queiram apenas o rigor para os outros, enquanto desfrutam de regalias imorais, por meio de carteiradas, do apadrinhamento, da arrogância, do suborno, da mão grande e da violência. 


Luzia M. Cardoso