O Mistério do Pescado
Em roda de conversa com pessoas distintas, algumas bem de vida, outras, tentando agarrá-la à unha, ouvi aquela velha frase acerca do peixe e das lições de pescar. Os primeiros argumentavam que, se o peixe é dado, a pessoa vai para a rede descansar. E, em tom professoral, insistiam: "Tem que ensinar a pescar!" E falavam ser de seu conhecimento que, desde que criaram o Programa de Distribuição dos Peixes, havia pessoas recusando trabalho e aumentando o número de filhos para também aumentarem a quantidade de peixes nas cestas que recebiam por lá. E diziam que, assim, as pessoas passavam a crer no milagre da multiplicação de peixes pela fertilização do ventre.
Ah, mais há muitos
mistérios ocultos entre as mãos do pescador e o peixe que vai partilhar com a
família à mesa. Não é somente a vontade, a técnica e a labuta de pescar. Há
mais mistérios... Há muito mais. Há o mar...
Há o mar... Ahh, o mar! E nos dias atuais, o mar não está para peixes e
as ondas vivem a afogar o pescador.
Nessas águas de
peixes escassos e ondas altas, crespas, é preciso ir para alto mar... É preciso
ter mais do que uma rede remendada e uma jangada para pescar. É preciso muito
mais, e mais ainda, em tempos de procelas.
E diante das procelas
e do mar revolto, volto ao cesto de peixes para entender. Observo que há cestos
com 70 peixes e há outros cestos, menores, com 32 peixes, uns, e 38 peixes,
outros. Ao procurar entender como são distribuídos, verifico que os primeiros
são destinados às famílias classificadas como sendo extremamente pobres, com
renda mensal familiar, por pessoa, inferior ou igual a 70 moedas.
Busco entender como
se dá o acesso aos outros dois cestos de peixes (os que têm 32 e os que têm
38). As condições são as seguintes: todas as famílias extremamente pobres têm
direito ao cesto de 70 peixes. Aquelas que tiverem entre os seus membros,
crianças e adolescentes de até 15 anos de idade, podem solicitar os cesto
menores, os de 32 peixes, desde que, comprovem que os filhos frequentam,
regularmente, a escola e que estão com a vacina em dia.
Ah, é por isso que
dizem que o cesto-peixes leva à acomodação! Há quem acredite que basta ter mais filhos para ir receber mais cestos de 32 peixes. Há quem acredite que as pessoas
que estão em situação de pobreza passarão a ter filhos para aumentar o número
de peixes à mesa.
Eu conheço bem as
colônias de pescadores e quem vive no mar precisa sempre pescar. Então,
continuo por aqui com os critérios para o acesso ao tal cesto de 32 peixes. A regra é a seguinte: cada família poderá
receber, apenas, e no máximo, três cestos de 32 peixes, a mais. Nada além!
Para receberem o ouro cesto, aquele com 38 peixes, a família terá que ter filhos adolescentes, entre 16 a 17
anos, frequentando regularmente a escola. No máximo, cada família poderá
receber apenas dois destes cestos.
Em síntese, a
distribuição dos tais peixes se dá da seguinte forma:
1 - As famílias
extremamente pobres com três ou mais filhos de 0 a 15 anos e com mais dois ou
mais adolescentes, de 16 a 17 anos, e que cumprirem as condicionalidades
exigidas (frequência à escola e comprovação de vacinação) terão direito a
receber por mês, no máximo: um cesto de 70 peixes + 3 cestos de 32 peixes (96
peixes) + 2 cestos com 38 peixes (76 peixes) = 242 peixes mensais.
Considerando uma
família composta de um adulto e cinco pessoas, entre crianças e adolescentes,
de até 17 anos, terão, ao mês, cerca de 40,4 peixes para cada um. Assim,
considerando o mês de 30 dias, cada pessoa terá como refeição diária uma pequena porção 1,34
peixes.
2 – Para as famílias
extremamente pobres composta de dois adultos, mais de 5 pessoas, com idade
entre 0 a 17 anos, a conta será a seguinte: 70 peixes mais 3 vezes 32 peixes,
mais 2 vezes 38 peixes, dividido pelo número de pessoas na família. Ou seja, à
mesa dessa família, cada pessoa receberá muito menos de um único peixinho
diário por dia!!!
3 – Se a família
tiver uma gestante, e se comprovar acompanhamento pré-natal, poderá receber mais um
cesto com 32 peixes por até nove meses. Após o nascimento do bebê, se
comprovar aleitamento materno, poderá recebê-lo por mais 6 meses. Ah, mas vi
que, no máximo, cada família considerada extremamente pobre, além da cesta com
70 peixes, somente poderá receber até 5 cestos menores amais.
Independentemente do número de crianças, adolescentes, gestantes e nutrizes. Nada além!
Dentro desses
critérios, uma família de 15 pessoas, em situação de extrema pobreza que, em
sua composição, tenha 3 mulheres nutrizes ou gestantes, 8 crianças de 0 a 15
anos e 4 adolescentes de 16 a 7 anos, receberá um cesto grande com 70 peixes,
mais 3 cestos, com 32 peixes (96 peixes), mais 2 cestos com 38 peixes (76 peixes) . Nessa conta,
terão, por mês, 242 peixes para repartirem com 15 pessoas. Em cada dia do mês,
cada pessoa terá ao prato menos de um peixe para alimentação! Menos de um peixe diário como refeição dá
para alimentar?
Ou seja, não adianta
aumentar o número de crianças, adolescentes, nutrizes e gestantes. Cada família
extremamente pobre (aquela que tem, no máximo, como renda mensal por cabeça, 70
moedas) receberá, no máximo, 242 peixes mensais!!!!´
E ainda há quem acredite
que o cesto-peixe leva pessoas à vida mansa, deitadas à rede, na sombra e água
fresca! Só se viverem de brisa!
Olhando, de um lado, o mar, o
exército de pescadores na lida, de sol a sol e do outro, os guetos e a miséria multiplicados, eu fico a perguntar aos meus botões: Se há mar, se há peixes, se há
pescadores e se há pescaria de sol a sol, quem está ficando com o pescado?
Luzia M. Cardoso
RJ, 23 de maio de
2014