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quarta-feira, 3 de junho de 2020

Trilogia de Nova York III: Quarto Fechado



Trilogia de Nova York III: Quarto Fechado


Junho do ano da Covid-19 e eu, uma brasileira que não desiste nunca, me mantendo nessa quarentena líquida, começo a ler o terceiro livro de Paul Auster.

Destelo tela a tela do Quarto Fechado enquanto uma outra  tela à minha frente noticia o número de contaminados, de mortos,  de subnotificações, subtestagens, modificação na metodologia de apresentação dos dados epidemiológicos...

Os mortos saltam das covas e  gritam que são muito mais de trinta mil neste três de junho e   correm pelas ruas arrastando sombras.

Mortos nos hospitais, nas portas de emergências, no caminho, nas residências, nos contêineres, nos cemitérios...

Corpos estirados, gelados, inertes... Corpos de seres dos quartos fechados. Será que há seres mortos dos quartos fechados?

Penso que todos nós somos seres dos quartos fechados, com armários com portas ranhetas a reclamar  do mofo, das traças, dos cupins, da poeira... Cruéis, nos apontam todos os nossos rasgos de caráter a embaçar  o espelho...

Parece que ouço um zunido daí... Já  ouço uns mimimis...  Estão a retrucar, com um grito mudo: - Eu, não! Eu deixo a porta sempre aberta!

De cá, me resta rir. Sim, rir. Penso que somos todos seres dos quartos fechados. Alguns mantém a porta do quarto fechada, mas a atravessa, ocasionalmente.  Outros, após levarem tudo para detrás do armário, até se permitem abri-lo.

Há ainda os que, fechados, perdem a chave da porta de seu próprio quarto. Já aqueles que perdem a chave da porta quando do lado de fora, precisarão arrombá-la ou contratar um chaveiro. Estes, ao retornarem ao interior de seus quartos, talvez, não mais o reconhecerão ou, talvez, mudem de quarto ou se percam pela sala.

Sempre me preocupo com um outro grupo dos quartos fechados: aquele que não providencia uma porta...

Agora, uma parte reveladora dos quartos fechados é a janela: vidraças, toldos,  cortinas...

Cá, com o laçarote de meu pijama, volto a espiar o meu próprio quarto. Prudente, olho pela fechadura.

É incrível quanto que a fechadura de um quarto fechado pode revelar. E a fechadura, tagarela, sai mostrando tudo, havendo ou não uma chave atravessada do lado de dentro; havendo ou não trecos pendurados na maçaneta.

Pois é, somos, todos, seres dos quartos fechados. Volta e meia, alguns de nós deixamos cair chaves pelo caminho.    Há os que, após perde-las, se perdem a procurá-las;  há  os que não as procuram jamais; e  há aqueles que, encontrando chaves alheias, acreditam que abrirão as portas de seus próprios quartos.

E há um outro grupo que destaco e o apresento agora, pois, dele,  devemos nos atentar:  o dos quartos fechados que furtam as chaves dos outros.

Convivi com todos esses seres dos quartos fechados e também já tive momentos diversos...

Hoje, percebo que estamos diante daqueles dos quartos fechados a sete chaves e que estão a nos propor quarentenar com as nossas portas abertas? Há, inclusive,  manifestações dos quartos trancados, reivindicando chaves alheias, onde,  os mais trancados exigem o sequestro de nossas portas.

Tempos líquidos, quartos líquidos, portas líquidas, chaves líquidas... Experiências líquidas dos quartos fechados.

Luzia M. Cardoso

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