Os
Despossuídos, de Ursula K. Le Guin
Nesses
tempos de pandemia, diante das praias, calçadas e bares lotados de pessoas que
negam a gravidade da situação, a vida parece se desenvolver em realidades
distintas, separadas, apartadas. Em um mundo, o planeta habitado por pessoas
que se veem diante de um vírus letal e, por isso, buscam o isolamento e o
distanciamento social e se preocupam com a higienização das mãos e com o uso de
máscaras, visando dificultar a proliferação do vírus. O outro mundo está
habitado por pessoas que não estão nem aí, adeptas do ditado “o que os olhos
não veem, o coração não sente”, permanecendo na postura de Tomé de necessitar
ver (sentir, doer e chorar) para crer. E só recorrendo a Gilberto Gil para passar
por esse paradoxo.
“De um
lado, esse Carnaval, de outro...
E é nessa perspectiva paradoxal que se desenvolve
a trama escrita por Ursula K. Le Guin. Trata-se de um livro de ficção
construído de tal forma que nos leva à reflexão sobre os rumos da humanidade.
De
cara, os nomes das personagens, das cidades, dos planetas nos causam
estranhamento pois não nos remete à nenhuma associação com as personagens reais
da história da humanidade. Contudo, no desenrolar da história... Mundos
distintos na face aparente, mas como nos lembrou Marx, a realidade tem
múltiplas faces e não se revela de imediato. É preciso ter olhos e instrumentos
para enxergá-la.
E por
falar de Marx, para quem leu o seu livro de mesmo título, Os Despossuídos, escrito
em meados do Século XIX, poderá perceber que embora com abordagem completamente
distintas, eles tratam sobre o mesmo objeto.
Marx
reflete sobre a (des)posse quando trata da lei Renana que visou coibir a coleta
de madeiras caídas nas florestas e que era realizada por parte da população que
com o resultado da coleta não só abastecia a família com lenha para cozinhar e
aquecer a casa, mas também com materiais para fabricar ferramentas e
artesanatos e comercializá-los. Mas as florestas, antes de ser patrimônio
público, é tratada pela lei como não podendo ter os seus frutos usufruídos por
todos. E daí se discute sobre “os ladrões de madeiras e o direito dos pobres”.
Olhando de perto, com instrumentos próprios, surge a questão: quem são os
verdadeiros ladrões nessa relação.
Também
partindo dessas duas perspectivas, proprietários e não proprietários, Le Guin
desenvolve o seu texto. O direito à propriedade privada X o acesso comum aos
recursos existentes como direito coletivo. Mas como nem tudo que reluz é ouro e
embora se trate de ficção... o livro nos faz refletir sobre a nossa própria
realidade.
“Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total
Uo-o-o-o-o-o”
Vale
ler a complexidade da tal “novidade”.
Boa
leitura!
Luzia M. Cardoso
Citação: Letra da
música de Gilberto Gil, A Novidade.
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