Obra licenciada por Creative Commons

Licença Creative Commons
Este obra foi licenciado sob uma Licença Creative Commons.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

O COTIDIANO DE UMA TRABALHADORA SOCIAL

O COTIDIANO DE UMA TRABALHADORA SOCIAL


Shirley é uma trabalhadora brasileira, como muitas outras. Formou-se e conseguiu emprego na profissão, por meio de aprovação em concurso público. Ainda hoje, no Brasil, o setor público, principalmente o de serviços, é o que mais contrata na sua especialização do trabalho coletivo. Apesar de o Estado ser o principal empregador, e talvez por isso, o valor do salário de seus trabalhadores tem sido o mais atingido pelos interesses econômicos e políticos do grupo hegemônico.
Casada e mãe de dois filhos, o salário de Shirley compõe a renda familiar com o marido, professor. Somados, os salários não chegam a dez salários mínimos.
Devido aos altos valores imobiliários, e por investirem na educação dos filhos, o casal não conseguiu comprar a sonhada casa própria, pagando um aluguel no valor de dois salários mínimos. Os gastos domésticos consomem uma importante parte da renda familiar: despesas de condomínio, no valor de um salário mínimo; a educação dos filhos leva cerca de cinco salários mínimos - pois para o casal poder trabalhar precisa de escola em tempo integral.
Há ainda os gastos com a alimentação, roupas, transportes, energia elétrica, entre outras. Acrescentam-se as despesas necessárias a tão discutida inclusão digital, da qual ninguém pode mais ficar excluído.
Com uma carga horária de quarenta horas semanais de trabalho, Shirley e o marido acordam, diariamente, as cinco horas da manhã. Iniciam o dia organizando a infra-estrutura doméstica, viabilizando, dessa forma, as condições necessárias à frequência ao trabalho e a escola, para os filhos.
Shirley vai para o trabalho de ônibus, levando cerca de sessenta minutos, no percurso de ida e volta. Inicia sua jornada de trabalho no momento em que chega ao local, embora devesse começar as oito horas. Esse fato ocorre porque sua atividade profissional implica na relação com pessoas com necessidades das mais diversas que, talvez pelo sofrimento, não a percebem  como um trabalhador, que tem hora para iniciar a jornada e hora para terminá-la, sendo vista como a boa moça pronta para ajudar.
A instituição, onde Shirley trabalha, está organizada para cumprir os objetivos de seu processo de produção, no qual seu trabalho, na maioria das vezes, é apenas um trabalho complementar e tratado como secundário. Nesse sentido, a infra-estrutura para que desempenhe suas tarefas é muito precária: insuficiência de instrumentos de comunicação para com outras instituições; escassez de materiais para a elaboração, organização e para o registro do trabalho; falta de transportes para as visitas domiciliares e institucionais; e, o que é mais grave, falta de local adequado para o atendimento à população, e que resguarde o sigilo necessário ao que é revelado aos profissionais. Muitas vezes, para conseguir levar a termo o objetivo de seu trabalho, Shirley compra, com recursos próprios, os meios de que necessita.
Shirley atende às pessoas que chegam por iniciativa própria, encaminhadas por outros profissionais ou convidadas ao atendimento, pela própria profissional. A partir da necessidade apresentada pelo usuário/contribuinte/cidadão (Shirley está traumatizada com a palavra cliente), ou pelo fato que levou o mesmo à instituição, ela busca conhecer melhor sua realidade e a natureza dos fatores que contribuem para alguma situação de risco social.
A aproximação desse profissional a uma outra realidade, diferente da sua, ocorre apor meio da investigação (também científica). Para tanto, Shirley utiliza-se de técnicas, elabora instrumentos de coleta de dados, lê e escreve em prontuários, planeja a observação e as visitas domiciliares, prepara reuniões, pensa nas abordagens que terá com a população etc. Todos esses meios possibilitam a compreensão dos fatores sociais, econômicos, culturais, familiares, entre outros, que estão determinando ou agravando uma dada realidade.
Com esse processo de aproximação e de conhecimento da forma de vida do usuário/contribuinte/cidadão, Shirley identifica as prioridades deste e, juntos, selecionam os recursos disponíveis para modificarem os principais fatores que levam a risco social, ou aqueles que se apresentam mais urgentes e viáveis, a curto prazo.
Muitas vezes, para modificar um fator econômico, Shirley utiliza alguns programas governamentais, bem como outros oferecidos por instituições filantrópicas. No caso da política de assistência social brasileira, na maioria das vezes os programas não atendem à demanda, ou têm uma porta de entrada muito estreita e, por isso, trabalhadoras como Shirley sentem-se completamente impotentes.
Para o competente uso de seus instrumentos de trabalho, Shirley busca conhecer alguns conceitos da psicologia e da antropologia, além de outros próprios à sociologia e ao direito. Com esse aporte teórico e metodológico, Shirley tenta que sua ação profissional não seja determinada por valores pessoais e morais, ou por preconceitos e senso comum.
O conhecimento acerca de direitos sociais e da legislação existentes ajuda na compreensão do alcance dos instrumentos de comunicação e de intervenção ,construídos para possibilitar o acesso do usuário/contribuinte/cidadão aos direitos do qual possa estar excluído.
Shirley sabe que nenhuma ação é neutra e por isso busca maior consciência das consequências da lógica que imprime à intervenção, bem como à redação de seus documentos.
Além do atendimento ao público, Shirley também supervisiona estagiários. Esta outra atividade implica em estabelecer relações, diretas e indiretas, com as unidades de ensino de nível superior.
Para a atividade de supervisão de estagiários, Shirley precisa dominar alguns recursos da pedagogia, visto que deverá colocar ao alcance da compreensão dos alunos/estagiários o referencial teórico e a metodologia que utiliza, além de precisar desenvolver métodos e instrumentos para a avaliação desses outros consumidores de seu trabalho: os alunos/estagiários.
Para Shirley, essa relação com as unidades de ensino é bastante conflitante, visto que as Escolas parecem reforçar a divisão entre o trabalho “manual” - aquele que é executado junto à população - e o trabalho “intelectual” - aquele que ocorre no interior das unidades de ensino. Parecem atribuir poder, valor e status diferentes a esses trabalhadores, conforme a lógica da divisão social do trabalho.
Nesse sentido, muitas vezes a relação entre os profissionais “de ensino” e os  “da execução” ocorre de forma intrigante: os primeiros parecem que querem  (re) ensinar “como fazer”, ou que querem “capacitar” novamente os segundos, às vezes entendendo que os alunos/estagiários podem auxiliar em tal objetivo.
Para Shirley, há um certo estranhamento entre professores e os profissionais da "execução"; entre o produtor e seu produto; entre o criador e a criatura, já que alguns professores não se reconhecem ao se depararem com as atividades desenvolvidas por seus ex-alunos.
Shirley não sabe se, como diz Caetano Veloso, “Narciso acha feio o que não é espelho”, ou se ocorre, na academia, o mesmo processo de alienação que se dá com qualquer outro trabalhador quando se depara com o produto final do trabalho coletivo: não identifica o parafuso que apertou.
Consequência também do estranhamento entre o trabalhador e o produto final é a forma como os alunos/estagiários chegam ao campo de trabalho de estágio. Com algumas exceções, na maioria das vezes, o aluno apresenta uma leitura estereotipada do supervisor, construída, provavelmente, durante o seu processo de formação profissional.
A partir de uma visão preconcebida “da prática”, os alunos/estagiários tentam inverter a lógica da relação inerente ao processo de supervisão: em vez de chegarem para aprender, chegam para ensinar, com um discurso carregado de eufemismos: “queremos trocar/oxigenar o trabalho do profissional.”
Shirley já teve problemas com estagiários que imprimiam à relação um traço de desrespeito, predominando uma espécie de “ética para os outros”, criticando, em sala de aula, a prática de seus supervisores, sem tomar  cuidado de pedir autorização para divulgar o trabalho e a identidade do mesmo.
Legitimando a diferença e o valor do trabalho entre aquele que está “no campo” e o “da academia”, em muitas Escolas, é o professor, dentro das unidades de ensino, quem avalia, aprova e reprova o aluno na disciplina de estágio supervisionado. Apesar de tais experiências ocorrerem no interior de outra instiuição, denominada de campos de estágio, e, portanto, distantes dos olhos e dos ouvidos dos professores.
Assim, o trabalho do supervisor parece ser desvalorizado, quando em relação ao do professor, embora seja indispensável para legitimar o diploma dos novos profissionais. Contudo, parece não haver dúvidas com relação ao valor-de-uso do trabalho desse profissional, porém, parece haver ainda uma espécie de negação acerca do valor-de-troca dessa força de trabalho.
Shirley, como qualquer outro trabalhador, vivencia vários conflitos em seu local de trabalho, seja devido à implantação de novas tecnologias gerenciais, e ao autoritarismo nas relações de poder interprofissionais, inerentes à divisão social e técnica do trabalho.
Outras tensões perpassam o trabalho dessa trabalhadora: o conflito na relação intraprofissional, próprio à interação entre o antigo e o novo, entre a ação e a intenção, entre o crítico e o reacionário, além de outros conflitos resultantes de um mundo de trabalho marcado pela competitividade.
Como se não bastassem todos esses elementos presentes no processo de trabalho de Shirley, ela ainda convive com a angustiante discussão no campo acadêmico sobre se a profissão que escolheu é ou não considerada trabalho, se é ou não uma atividade produtiva.
Um dia Shirley foi questionada sobre a tão discutida “Questão Social”, e assim respondeu:
- “Me sinto como uma formiga, trabalhando no solo. Faço buracos, carrego folhas, adubo a terra, além de várias outras atividades. Sei que existem também outros animais que transformam este mesmo solo: tatus, tamanduás, elefantes e muitos outros. Muitas vezes, devido à distância, não percebemos o que modificamos. Em outras, quando  ficamos muito perto, não gostamos do odor ou da cor que produzimos. Contudo, gostando ou não, o solo é modificado por um trabalho coletivo e nunca é o mesmo solo no momento seguinte”.
E mais um dia de trabalho de Shirley chega ao fim, ou melhor, finda a primeira jornada, pois a segunda (a organização da vida doméstica), a terceira (o acompanhamento das atividades escolares dos filhos), e a quarta (a atualização teórica e metodológica), ela desempenhará em sua casa, nos horários destinados ao “descanso.”
Frequentemente, Shirley sai do trabalho com uma forte enxaqueca e se queixa de fadiga e estresse. Como é adepta da medicina alternativa, não vai ao médico, acreditando resolver seus problemas de saúde com do-in, açaí e maracujá. Conhece colegas que, também numa prática equivocada de automedicação, utilizam medicamentos da alopatia, inclusive ansiolíticos.
Em seu trajeto de volta para casa, Shirley se lembra de sua rotina de trabalho e confronta com outras que conhece do relato de colegas que trabalham na mesma atividade, embora em outros locais. Sabe, contudo, que apesar das diferenças elas têm muitas coisas em comum.
E no interior do ônibus, já completamente embriagada pelo cansaço, mas sorrindo, Shirley pensa em todas e em todos os colegas e, parodiando Martinho da Vila canta:

Na maioria mulheres
de todas as cores,
de várias idades,
lendo muitos autores...
Umas até
certo tempo encararam.
Outras, logo
se deseperaram
Mulheres casadas,
e equilibradas.
Mulheres solteiras,
ou por um triz.
algumas cabeças
determinadas,
tem tantas outras
alienadas
Mulheres de garra
e determinadas
Ma, todas perguntam:
Como construir a utopia
que a teoria traz?
Procuramos
discutindo as correntes
Transformar a realidade.
Mas nos frustramos,
ficamos na saudade.
Vai começando bem,
mas tudo tem um fim.
O salário é
o pão de nossa vida,
essa é que é a verdade.
É e só com muita luta,
e não apenas com a vontade,
que construiremos, um dia,
o que sonhamos, enfim.

Por Luzia

2 comentários:

Robson disse...

Gosto muito da forma como você usa contos e crônicas para denunciar nossos problemas sociais! Uma ótima forma de convidar à leitura e à reflexão aquelas pessoas que pensam não serem "inteligentes" o suficiente para ler sobre tais assuntos.

Sobre o texto, eu acho que nossa sociedade é extremamente vaidosa e fragmentada. Eu me pergunto, se a união faz a força, por que estamos estruturados dessa forma?

Obrigado por me fazer pensar!

Robson

É Vivendo que se Vive disse...

Robson, essa foi uma crônica-catarse! Rsrs

Abraços!