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domingo, 2 de janeiro de 2011

Aos Pés do Flamboyant

Aos Pés do Flamboyant



Luzia M. Cardoso

RJ, Janeiro de 2011






O corpo negro da noite espreguiça-se, acordando vagarosamente. Expande-se, permitindo a penetração dos fios prateados da lua que salta sobre ela, rodopiando, bela e cheia. Um cenário perfeito para uma noite de amor.
Último dia de um ano nos últimos suspiros. Estamos na Lapa, centro histórico da Cidade Maravilhosa, com sobrados do Brasil Colônia em péssimas condições, apesar da fachada ser patrimônio histórico nacional. Como pão bolorento, eles estão com o interior úmido, mofado, instalações elétricas sem manutenção, com muitos fios expostos, desencapados...
João caminha pela rua do Riachuelo, em direção aos Arcos da Lapa. Alto, magro, pele casca de kiwi e cabelos sedosos e pretos. Os olhos negros parecem que foram recortados da noite, e o sorriso branco, com dentes perfeitos, tdevem ter sido esculpidos, um a um, em alguma pedra lunar.
Se não estivéssemos no século XXI, imaginaríamos esse homem trajando um terno branco de linho amassado, sapatos bicolores, com chapéu, também branco, tipo Panamá, levemente caído sobre a testa. Mas esse não é o João que entra em 2011.


A rua fica deserta, como sempre acontece ao desabrochar as noites de feriado. O movimento, cavalheiro, aguarda o amadurecimento da dama, enquanto João anda a passos rápidos e gingados. Tem pressa. Dobra à esquerda, depois à direita, e chega à rua Mem de Sá, já suada com a garoa. Pára em frente ao sobrado onde mora. Abre a porta de madeira, pintada de azul anil, que junto com a janela, também de madeira e na mesma cor, adornam a faxada marfim.
A chão da sala de tábua corrida, sem brilho, caduca, ranheta com o peso dos pés de João. As paredes lembram o ápice do outono, quando as folhas desbotadas caem, deixando o tronco despudoradamente nu, aos caprichos do vento. O teto ainda está forrado por lâminas de madeira, pintadas de branco, ao centro, balança um fio solto com uma lâmpada fluorescente pendurada. Determinado, entra na cozinha, velhos azulejos, ainda azuis, assistem João procurar por uma caixa de fósforos e por velas brancas.


- Onde estão? Nunca as encontro quando preciso.
Enfim, apalpando o fogão de duas bocas, à gás de botijão, encontra os fósforos.
- E as velas?
A última das cinco caixas de velas brancas que comprou no último vinte e nove ainda está caixa lacrada, dentro do velho armário também azul, preso no alto da parede da cozinha.
João pega as duas caixas, a de fósforos e a das velas. Caminha em direção ao quarto. Sobe a escada de degraus de madeira, que também gemem à sua passagem. Percorre um corredor sombrio, estreito, e entra no quarto. Móveis de jacarandá, antigos: um armário de duas portas, um espelho de cristal decorado, à frente de uma delas, e uma cama de viúvo, ao fundo.
João abre o armário e retira as peças de suas vestes de noite. Arruma, cuidadosamente, uma a uma sobre a cama. No armário, ao alto, pega uma caixa com sapatos. Depois, puxa a primeira gaveta. Lá estão as meias, e logo, na gaveta seguinte, pega as roupas íntimas.
Sai do quarto, dirige-se ao banheiro. Abre o chuveiro elétrico, inoperante, e rápido, banha-se em ducha fria. Estava cansado, pois trabalhou a noite anterior, de dezenove horas as sete de hoje, emendando com o plantão que seria do colega, a pedido do mesmo, saindo ainda há pouco, as dezenove horas.


- Joguei pedra na cruz.
Reclama e enrola-se em uma toalha branca, nova. Começa a produção: primeiro as peças íntimas, também novas, rendadas; agora a meia de seda transparente; entra no vestido branco, grudado ao corpo, com um insinuante decote nas costas. Calça os sapatos vermelhos, salto quinze.
- Ssssssmac!!!! Belíssima!!!!!!
Um curto circuito, há dois dias, deixou os sobrados do quarteirão sem luz, por isso, João arruma-se à luz de velas. Acende mais duas, para melhor visualização, posicionando-as bem perto do espelho, Como um exímio cirurgião, com gestos precisos e delicados, pinta o rosto. Primeiro a base, retirando as imperfeições e disfarçando os vestígios de barba. Passa ligeiramente o pó, e contorna os olhos com lápis preto. Cola os longos cílios postiços. Nas pálpebras, dois tons de cor...
- Cinza-chumbo e prateado... Que show!!
Passa o blush e o batom...
- Hum, contornarei os lábios com lápis para aumentá-los, ficarão mais atraentes.
Arruma a peruca longa de fios acobreados... Por fim, cola, uma a uma, as unhas longas e pretas.
- Uau, que gata!!!!!!
Pega a bolsa de mão, da cor dos sapatos, e sai linda, sensual, ao som malandro do bairro boêmio, atraindo para si todos os olhares, sendo assediada pelos homens que passam em seus carros...
- Gostosa, quer passar o Réveillon lá em casa?
- Uau, essa é a nora dos sonhos de meu pai!
Sorri, um sorriso maroto, de canto de boca, discreto, próprio à mulher fiel e comprometida. Nesse momento, uma flecha atravessa seu pensamento:
- Que falta de criatividade, essas cantadas são mais velhas que a própria Lapa. 
 
Segue, chega à linha férrea para Santa Teresa. Senta-se, cruza as pernas, delicadamente, ao balanço do bondinho.
- Que noite linda!
Seus olhos perdem-se no mirante iluminado do Rio de Janeiro, enquanto, no céu, abrem-se milhares de olhos do universo.
- Consegui... Bem na hora!
Murmura, achou que não chegaria no horário. Salta do bondinho, aos pés do florido flamboyant. Entra na casa de show... Luz negra, holofotes... Passa, cumprimentando a todos os presentes.
- Vamos, vamos, querida!
Entre beijos, as amigas a aceleram. Sobem a escada lateral do palco. Posicionam-se na ribalta apagada, e João fica de costa para o público, e de frente para os músicos. As cortinas estão cerradas, abrindo-se de repente. As luzes acendem-se, e ela é ovacionada. Tigresa, vira-se, lentamente, para a platéia. Um frisson!
Com os olhos ávidos, percorre cada cadeira, cada mesa, canto a canto do salão, procurando por alguém. Suspira...
- Ahhhh, lá está. Então veio.
Temia que não viesse, pois tiveram uma briga feia ao revelar-lhe ter retornado aos shows. Conheceram-se na universidade, quando cursava medicina e seu grande amor estudava psicologia. Ambos exercem a profissão, trabalhando em hospital público.
No palco, agora estrela, está inacreditavelmente mais radiante, feminina, sua voz é suave e afinadíssima. 
 
Exigente, selecionou o próprio repertório para esse dia especial. Canta Chico Buarque, Caetano Veloso, Tom Jobim, Vinícius de Morais. Sai da bossa nova, cai no samba de Zeca Pagodinho e Martinho da Vila.  Volta ao MPB, e interpreta Elis Regina, imita Alcione, Maria Betânia, Adriana Calcanhoto, Ana Carolina e Rosa Passos. 
 
Ahhhh, é o ápice de seu número, canta Stani Amori,  de Laura Pausini, em perfeito italiano, e de olhos fixos nos olhos mel do amor. Pura emoção!
- Bravo!!!! Bravíssimo!!! Bis!!!!!
Grita a platéia enlouquecida. Indiferentes às súplicas, aos aplausos, aos assobios e aos pedidos de bis, as cortinas caem, pesadas, implacáveis.
A estrela desce e no camarim, despe-se e troca de roupa. Caminha em direção à razão de sua vida, que o recebe com duas taças de champanhe.
Ambos no salão, à meia luz, a poucos passos da meia noite, juntos a todos, mas pareciam estar a sós. Olhos nos olhos, taças transbordantes nas mãos, braços entrecruzados, juntos acompanham a contagem regressiva...
- Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um... Feliz 2011!!!!
- Feliz Ano Novo!!!


(Trata-se de um conto, nesse sentido, é uma ficção. Qualquer semelhança com a realidade é apenas uma coincidência)


  Publicado pela CBJE, em Grandes Contos de Autores Brasileiros


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