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terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A Caminho do Paraíso

A Caminho do Paraíso




Quando eu era criança, das conversas dos adultos sobre a morte, entendia que quem morria ia morar no céu. Ficava, então, imaginando o mundo celeste e vasculhando o céu azul infinito, buscando sinais da comunidade estelar.

Já na pré-adolescência, convivi com amigos de religiões diversas. Convidada, ia com eles e seus familiares às missas, aos cultos, às sessões, às palestras. E ouvia falar sobre o amor ao próximo, sobre solidariedade, sobre os olhos e as mãos de Deus. Ecoava, em minha mente, a frase bíblica “Há muitas moradas na casa do Senhor.”.

De família de trabalhadores, morando de aluguel, a preços dos olhos da cara, ao ver meus pais fazendo as contas e optando entre a roupa dos filhos e o teto, com o chinelinho de borracha arrebentado nas mãos a remendá-lo com um preguinho, eu pensava, com os meus laços de fita: “Por que não vamos morar na casa do Senhor?”

Eu crescia. Crescia com as metrópoles brasileiras. Crescia enquanto crescia Brasília. Crescia, vendo a cidade do Rio de Janeiro mudar de cara. Dos quintais das casas de muros baixos, com mangueiras, pitangueiras, pés de groselhas, de carambolas... Aos áridos arranha-céus, de muros altos e farpados.

Quando jovem, trabalhadora e universitária, para ficar perto da faculdade e baratear os custos da formação, aderi à república de estudantes, aprendendo a viver com muita gente em pouco espaço.

Nessa época, achava que a ideia da república era a mesma da casa do Senhor, contudo, acreditava que no céu o espaço deveria ser bem maior, pois o universo é infinito.

Cheguei à idade adulta, no tempo futuro que, enquanto menina vivia, a imaginar. Constitui família e, como os meus pais, tive que fazer muitas mudanças. Mudando de casa na medida em que o valor do aluguel subia. Buscava moradia, sem privar a família da alimentação e vestuário, e tentando não ter que remendar, com pregos, o chinelinho de borracha. Precisávamos, portanto, manter os nossos olhos na cara, reeditando o ditado, pois “em terra de cegos, somente os quem têm olhos veem.”

Em pleno Século XXI, adulta, vejo a comissão de frente das eleições chegar às portas da Copa do Mundo, de 2014. E sem muito esforço, olhando mais à frente, vejo a massa que soma os duzentos milhões de habitantes brasileiros e que mantém em pé esse berço esplendido. E vejo todos na lona. Sim, na lona, mas ao alto, preparando-se para o salto mortal, equilibrando-se na corda bamba que se estende no batente das Olimpíadas de 2016.

E no Rio de Janeiro, na cidade Maravilhosa, multiplicam-se os clubes-residenciais que acenam com playground, piscinas, churrasqueiras, salões de festa, salões de jogos, estacionamento... Tudo cercado por muros altos. Muros altos e preços aos olhos da cara, numa espécie de apologia, irônica, à  pacificação dessa cidade partida.

E dentro do terreno em construção, visitando o apartamento à exposição, previamente montado e decorado, vemos muitos espelhos. Espelhos por todos os cantos e paredes. Espelhos refletem a luz... Espelhos inventam espaços.

Nos condomínios-clubes dessa arena carioca, o metro quadrado é espelhado na oferta, mas opaco na entrega. Leve e etéreo nas vitrines, para ser chumbado aos ombros de quem o carregar. O espaço da morada de, aproximadamente, cerca de cinquenta a setenta e poucos metros quadrados, aos olhos que se prendem aos espelhos, não passará de terreno de fé.

Os prédios sobem, o espaço aperta, os olhos saltam da cara lá para onde os pés não alcançam. A família de trabalhadores que busca o sonho da casa própria, que busca acordar do pesadelo dos aluguéis, percorre ruas, percorre bairros, atravessa encruzilhadas para subir lajes e perder o chão.

Encantados, há os que contam as moedas para comprarem miragens, numa conta multiplicada. E aqueles que compram as quatro paredes sonhadas, olham o embrulho luminoso de um metro quadrado, reluzente e ampliado ao espelho, e levam, sobre os ombros, o peso, em pacote opaco, do mesmo metro quadrado aos custos de cerca de oito mil, duzentos e oitenta reais e cinquenta e seis centavos. Cada metro quadrado financiado a perder de vidas, banhado em juros que levam os olhos da cara.


Luzia M. Cardoso
Rio de Janeiro, 09 de dezembro de 2013

2 comentários:

José-Augusto de Carvalho disse...

Excelente crónica. minha prezada Luzia!
Os explorados só têm a perder as cadeias que os subjugam...
Abraço lusíada.
José-Augusto de Carvalho
Viana*Évora*Portugal

É Vivendo que se Vive disse...

Obrigada pela presença, José-Augusto! Abraços brasileiros