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quinta-feira, 9 de abril de 2015

Pagando o Pato

   

Pagando o Pato



Trampo não é moleza, não e quem vive dele sabe muito bem disso! Há, evidentemente, alguns companheiros e companheiras que até conseguiram o trampo-dos-sonhos, de forma que unem o prazer da criação com a necessidade de vender a força de trabalho, em troca de salário para o pão nosso de cada dia. E, desses, muitos tiveram que investir muito para chegarem ao sonho. Muito trampo desprazeroso foi necessário enfrentar, e, quando não foram os próprios, certamente os seus familiares e muitos de seus ancestrais. 

A maioria de nós, todavia, vive do trampo-sacrifício, em atividades rotineiras, muitas vezes de pouco sentido onde, na maior parte do tempo, quando não é no tempo todo, a mente vagueia enquanto o corpo se arrisca e padece.  É claro que, em todas as atividades, mente e corpo são imprescindíveis para a sua realização, mas há atividades em que existem muitas horas que não levam a mente a lugar algum, ou a empurra para o mundo das emoções. E se o corpo padece e a cabeça não cria, vem o desprazer, a dor, a insatisfação, o sentimento de inutilidade... E daí, essa enxurrada de emoções romperá alguma barreira e se projetará naquilo que estiver à frente.

Num belo dia, na minha rotina de pegar no meu trampo, enfrentando o trajeto de ônibus, antes de subir no coletivo, percebendo que não tinha nem um vintém no bolso (quanto mais algum Real), dirigi-me ao único caixa eletrônico das proximidades e recebi a menor nota disponível na maquininha: R$ 50,00.

Fiquei bastante preocupada e ainda ensaiei entrar na padaria, ou na farmácia, para comprar alguma coisa qualquer, a fim de trocar a tão famigerada nota. Percebi, no entanto, que apenas anteciparia o constrangimento. Sabemos que caixas de estabelecimentos comerciais nenhum te trata bem quando você compra algo de um ou dois Reais com uma nota de R$ 50,00.

Sem saída, atravessei a rua e dirigi-me para o ponto do ônibus. Eis que chega o meu busão. 

 Subi. Muito sem graça, dei o meu único dinheiro para pagar a passagem. E aí começaram os transtornos temidos.

- Não tem menor não?

Perguntou-me a trocadora. Disse-lhe que não, que era o meu único dinheiro naquele dia e que eu não tinha nem mesmo moeda alguma, infelizmente.

- Não tenho troco não!

De forma agressiva, abrindo a bandeja de troco que, à minha vista, parecia vazia, retirou uma cédula de R$ 20,00.

- Só tenho R$ 20,00!

Reclamou com desdém. Disse-lhe que eu poderia passar e aguardar que fizesse o troco.

- Não senhora! A senhora fique aqui! Se eu fizer troco, a senhora passa!

Determinou. Olhei ao redor e vi que, naquele ônibus, antes da roleta, não havia nenhum banco para eu sentar. Solicitei, novamente, que me deixasse passar e que aguardaria o troco.

- Não senhora! Não sou obrigada e te dar troco para R$ 50,00! O troco máximo é para R$ 20,00!

Roxa de raiva, respondeu-me a trocadora. Sob as vibrações de Jó, numa santa paciência (talvez, por isso, a trocadora não tivesse nenhuma), olhei as paredes ao redor, procurando o Decreto que fala do troco máximo obrigatório. No lugar onde deveria estar a informação, havia uma mancha de algo que dali fora retirado. Perguntei-lhe sobre o Decreto, e ela que já nem me olhava, também não se dispunha mais a me responder.

Completamente constrangida, me equilibrando em pé, voltei a solicitar-lhe que me deixasse passar para sentar e aguardar o troco.  Fez ouvidos moucos.

Novos passageiros subindo, uns com cartão outros com o valor certo. Todos passando a roleta e eu, ali, em pé.

Dois bairros à frente, uma pessoa entrou com uma nota de R$ 20,00 e passou, com o troco surgindo facilmente em notas de R$ 10,00, de R$ 5,00, de R$ 2,00 e moedas de centavos.

- De onde ela fez surgir o dinheiro? 

Pensei. Voltei a solicitar que me deixasse passar. Novamente, ouvidos moucos.
Jó deve ter ido dar uma voltinha em outro ônibus, pois a minha paciência atingia o nível zero. Abri a bolsa e peguei o celular. Procurei o ícone da câmera, depois o da filmadora e, em tom audível, comuniquei:

- Estou gravando, viu? Então, deixa ver se eu entendi: a senhora está me impedindo de viajar sentada porque estou pagando a passagem com uma nota de R$ 50,00? É isso mesmo? Estou sendo punida?

Visivelmente p... da vida, a trocadora olhou para mim com os olhos em faíscas. Com gestos brutos, destravou a roleta. 

Passei e sentei-me no banco próximo a ela, para aguardar o meu troco, pois desde o início ela ficara com a minha única nota. Mantive o celular em punho. Vi a trocadora abrir a gaveta e fazer aparecer o dinheiro que ela disse não ter. Munida das frustrações acumuladas pelo seu tempo de trampo, com muito ódio no olhar, ela deveria pensar que vingança é um prato que se come frio e preparava o troco. 

Passagem no valor de R$ 3,40 e troco para R$ 50,00. Ao terminar de juntar, fitou-me com o rosto irradiando uma estranha satisfação. Dar-me-ia o troco, certamente. 

- Tome o seu troco!!!!!

Esbravejou. Entregou-me uma nota de R$ 20,00; três notas de R$ 2,00; duas moedas de R$ 0,05; uma moeda de R$ 0,50; vinte moedas de R$ 1,00; acrescidas de todo o constrangimento que vivenciei!

Estava tão constrangida que precisei conferir umas quatro vezes. Ora o valor que me fora entregue parecia ser menos, ora parecia ser mais. Não sabia o que fazer. Convidei-lhe, então, a conferir comigo.

- Não vou conferir nada!!!!

Esbravejou a trabalhadora.

Então, eu disse, conferindo em tom audível:

- Olha, vou contar novamente. Se tiver a mais, eu te devolvo. Se tiver a menos, espero que faça o mesmo.

- Não vou conferir mais nada!!! Já te dei o troco!

E virou-me a cara.

Bem, conferi e,naquela minha última conferência, o troco estava certo.

Fiquei lá, quietinha em meu banco, aguardando chegar ao meu destino. Graças aos céus, chegou. Dei sinal e desci. Lembrei-me de meu celular e fui conferir a filmagem.  

- Não acredito, não acionei o botão de gravar!!!! Estava tão constrangida que não gravei. Argh!!!!! 

Ao final do dia, já em casa, eu fui buscar confirmar a informação acerca do troco máximo obrigatório e a Lei e diz o seguinte:

“Decreto 7.445 de 02/03/88, Art. 2º: O troco máximo obrigatório no Serviço de Transporte Coletivo de passageiros por ônibus do Município do Rio de Janeiro é de até 20 vezes o valor da tarifa.” 

Eu estava dentro da lei!!!!!!! O troco máximo obrigatório para a passagem de ônibus de valor de R$ 3,40 é de R$ 68,00!!!!!! 


Luzia M. Cardoso
RJ, 09\04\2015

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