Luzia M.
Cardoso
Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e
educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta,
assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença
de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. (LEI Nº 8.069, Estatuto da Criança e do Adolescnte, de 13 de julho de 1990. Do Direito à
Convivência Familiar e Comunitária – Disposições Gerais)
São muitas as interpretações do artigo 19 do ECA que vem sendo dadas pelos profissionais que trabalham com crianças e
adolescentes, seja no campo da execução das políticas de Assistência Social, da
Saúde e da Educação, principalmente na atualidade quando há uma preocupação da
sociedade e dos governantes com relação à ferida exposta da dependência de substâncias
psicoativas: o crack.
O crack entrelaça-se a tantas
outras expressões da exploração capitalista, quando consumido por aquele segmento
mais vulnerabilizado da sociedade que se expõe à situação de rua, seja em
atividades no mercado subterrâneo ou devido
à violência intrafamiliar. Nas ruas,
esse grupo fica exposto à fome, ao tempo, à violência urbana, à indiferença e a droga é consumida como forma de fugir dessa cruel realidade.
E nas ruas encontramos crianças,
jovens, adultos e idosos de ambos os sexos, embora não signifique que todos os
agrupamentos em situação de rua sejam consumidores de crack, mas possivelmente,
todos tenham contato direta ou indiretamente com ele, ou com outras substâncias
psicoativas, como o álcool, o cigarro, a cola, entre outras.
Expostos ao cotidiano da rua, com
os laços familiares fragilizados ou rompidos, sem perspectivas de vida, há que buscar
meios de aguentar essa realidade e sobreviver, assim, muitos recorrem às drogas.
E nas ruas perambulam, esmolam,
furtam, agridem, brigam, dormem, fazem sexo e as mulheres, adolescentes ou adultas, engravidam.
Algumas, dos parceiros do dia a dia, outras, por fazerem do corpo mercadoria
para pagarem aquela outra que lhes promete condições de poder resistir
a tanta privação. Quando engravidam, com o ventre crescendo, o fruto deste passa
a ser cobiçado, correndo também o risco de virar mais uma mercadoria de troca nesse
mercado subterrâneo.
No momento do parto, sem muita
opção, o nascimento de um novo ser poderá ocorrer ali nas ruas, e as mães serão levadas para alguma maternidade
pública. Caso o parto não ocorra nas ruas, a mulher, por ação própria, ou por
assistência de terceiros, será conduzida à maternidade para o nascimento do bebê.
Uma gestação sem assistência
pré-natal, sob o sol e o frio do asfalto. Nesses casos, provavelmente, a não assistência à gestação ocorreu devido à desorganização que as drogas
acarretam no indivíduo, levando a certa desorientação no tempo e no espaço, quando em ação.
E quando essa mulher interna-se
na maternidade pública ou filantrópica, os profissionais de saúde vêm-se diante
de uma situação que parece desafiar-lhes a ética e por em cheque seu arcabouço teórico-metodológico.
O que fazer? De um lado um bebê-recém-nascido no processo de privação. Do
outro, uma mulher que sobrevive ao mesmo. Uma família privada de direitos.
Nessa hora, constatam-se as
mazelas de uma sociedade injusta, que se alimenta da ilusão de que o trabalho
dignifica o homem, mas que mantém milhares de trabalhadores com salários que
não lhes possibilitam o acesso, com dignidade, à moradia, alimentação, educação,
transporte, assistência médico-hospitalar, previdenciária, entre tantos outros
direitos sociais. A realidade que forja a situação de vulnerabilidade e risco será
constatada nas instituições de execução das nossas frágeis políticas
sociais.
E o que fazer com essa mãe e com
seu bebê recém-nascido frente ao consumo de drogas, à exposição aos riscos da rua, ao rompimento dos laços familiares e à iniquidade e
segmentação das políticas sociais?
Não é raro que os profissionais
de saúde percebam-se diante de uma espécie de "escolha de Sofia" e busquem a decisão do poder
judiciário. Mas ao poder judiciário cabe julgar situações de litígios, de
infrações, de crimes. E se cabem ao pais assegurar à sua prole condições para
que tenha um pleno desenvolvimento “físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”,
conforme o artigo 3º da Lei supracitada, essa mesma Lei, no artigo 23º, também afirma
que “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo
suficiente para a perda ou a suspensão poder familiar”, assim, a falta de condições presentes não ocorre nem por culpa nem por dolo dos mesmos.
Mas sem vínculos com a família extensa, com o
pai ausente, desconhecido, ou em situação de rua e consumidor de substâncias psicoativas, como a
genitora, muitas vezes a decisão judicial é pelo abrigamento da criança, ou por sua colocação
em família substituta. Nesses casos, supõe-se a possibilidade de um dia a genitora, ou os
pais, venham a ter condições de garantir os direitos de seus filhos. Talvez, decida-se ainda pela
internação compulsória da genitora em clínicas de tratamento de dependentes
químicos, contudo, sem a garantia de que ao sair ela terá oportunidades diferentes
daquelas com as quais se deparou até aquele momento.
Percebe-se que, nos casos de recém-nascidos, a tendência é afirmar que a realidade de seus pais levará à violação do direito dos mesmos e,
assim, ao decidir-se pelo abrigamento da criança, ou por sua colocação em
família substituta, suspende-se o poder familiar, judicializando a pobreza e vitimizando ainda mais aquela mãe que não consegue ver sequer um fino raio de luz no final daquele túnel.
A tendência é a suposição de que, devido à mãe encontrar-se em situação
de rua e ser consumidora de substância psicoativa, essa realidade levará às situações que o artigo 1638 do
novo Código Civil aponta para a perda do poder familiar, que são: castigar imoderamente o filho; deixá-lo
em abandono; praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; incidir
no abuso da autoridade ou na falta dos deveres familiares e é por essa hipótese que considera-se que a criança encontra-se em situação de risco.
É a “escolha de Sofia”: - Resguardar os
direitos da criança ou os de sua mãe (e de seu pai, se tiver)?
Independentemente das estratégias dos profissionais de tentarem construir, ou
reconstruir, a rede de proteção desses cidadãos a partir ou não do Tribunal de
Justiça, as ações e avaliações no interior das unidades de saúde
devem ser realizadas imprescindivelmente por profissionais formados e qualificados, nunca
por estagiários sem a presença física de seus supervisores, embora os
estudantes devam participar do processo enquanto momento de sua formação.
Caberá aos profissionais a analise das
demandas apresentadas por esse segmento da população, a fim de buscar as alternativas. Para tanto há que se identificar os determinantes
históricos daquela realidade, tanto as presentes em cada situação, quanto as coletivas; há que se avaliar a relação do usuário com a droga (se
consumidor eventual, dependente etc), bem como se o consumo da droga produziu danos
em sua saúde, relações familiares, sociais e vida laboral; há que se apresentar a
responsabilidade do Estado e da sociedade para apontar a função dos equipamentos do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e dos outros níveis de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como a responsabilidade dos governantes em equipá-los para assistência integral, universal e equânime. E assim, buscar a construção de caminhos que resguardem
os direitos de todos os envolvidos.
Para tanto, há que se fortalecer o
trabalho em equipe interdisciplinar, e entender que a rede de proteção se conforma em trabalho interinstitucional. Há que reivindicar a formação continuada e ultrapassar
a concepção biológica de saúde, do assistencialismo e da atenção emergencial, trabalhando com o paradigma da saúde como
resultado das condições materiais de vida e urgência na garantia de direitos, tanto para a criança quanto para a genitora e sua família.